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Navalha na carne
Especialista em filmes de horror fala à Folha sobre ascensão do gênero "torture porn'
MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DA REPORTAGEM LOCAL
É o tipo de cena que fez muita
gente passar mal nos cinemas
americanos: uma garota pendurada de cabeça para baixo vai
sendo lentamente fatiada com
uma foice por uma mulher nua,
deitada em uma banheira, em
busca de um banho de sangue.
Ela está em "O Albergue 2", a
última sensação do "torture
porn" a chegar às locadoras
brasileiras, e resume bem o
porquê desse tipo de filme de
horror ter sido rotulado assim
pelos críticos -algo como "tortura pornográfica".
Desde o imenso e inesperado
sucesso de "Jogos Mortais"
(2004) e "O Albergue" (2005),
os filmes de horror passaram a
um novo patamar de brutalidade e explicitação, com tortura
sádica em close e muito sangue
derramado. Críticos enojados
tanto com os filmes quanto
com seu sucesso forjaram o rótulo "torture porn" para detonar de roldão todos eles.
Esqueceram-se, no entanto,
de olhar a sociedade em que vivem, o mundo pós-11 de Setembro onde as cenas de tortura no
Iraque viraram rotina.
É o que afirma à Folha Adam
Lowenstein, professor de estudos cinematográficos da Universidade de Pittsburgh (EUA)
e autor de livro sobre o papel
social dos filmes de horror.
FOLHA - Já é possível estabelecer o
papel da nova geração do horror?
ADAM LOWENSTEIN - Acho que é
um pouco cedo, como mostra o
debate sobre o "torture porn".
Para mim, isso é uma indicação
de que a maioria dos críticos e
parte do público ainda não estão prontos para lidar com esses filmes do modo como lidamos com "A Noite dos Mortos-Vivos" [de George A. Romero],
que já é analisado rotineiramente com foco em sua importância social e política.
Não quero dizer que os filmes
recentes que são colocados sob
esse rótulo, como as séries "Jogos Mortais" e "O Albergue",
são tão bons quanto "A Noite...", mas acho que, com o tempo, algumas coisas sobre esses
filmes ficarão mais claras.
Olhando para as críticas da
época do lançamento do filme
de Romero, em 1968, percebe-se que ele também foi descrito
como um "torture porn".
FOLHA - O rótulo é inadequado?
LOWENSTEIN - Acho-o infeliz e
pouco útil ao debate. O termo
tem uma conotação muito negativa e sugere que a violência
nesses filmes é gratuita, irresponsável. Não quero generalizar, mas alguns deles são violentos por um motivo. Uma coisa que ficará clara com o tempo
é que o rótulo "torture porn"
terá de ser analisado em relação ao escândalo da tortura em
Abu Ghraib, na Guerra do Iraque. Muitos dos filmes foram
lançados e discutidos dentro do
contexto pós-11 de Setembro.
FOLHA - O nível geral de violência
explícita aumentou nos filmes, mesmo em outros gêneros?
LOWENSTEIN - Sim, e acho que
faz sentido que tenha aumentado no geral. Os filmes não têm
mais o papel central que costumavam ter na consciência social, precisam brigar muito
mais para serem notados. E
uma maneira de fazer isso é ficar mais gráfico, visceral, tendendo ao confronto, gritando
por atenção. Muito disso é
preocupante, mas não acho que
estejamos testemunhando
uma escalada sem precedentes.
O nível de violência que vemos
agora não é tão diferente de
momentos anteriores de crise,
como o período dos anos 80 em
que "Rambo" surgiu.
FOLHA - Mas, até pela evolução
dos efeitos especiais, os filmes hoje
não estão indo mais longe do que
nunca nas cenas explícitas?
LOWENSTEIN - Não acho. Se
olharmos para coisas tão recentes quanto os "slasher movies" do fim da década de 70,
aqueles filmes são tão brutais
quanto "O Albergue". Os "Sexta-Feira 13" são bastante gráficos e brutais, com ótimos efeitos especiais feitos com látex.
Hoje, temos computação gráfica, que é bem menos visceral,
os efeitos com látex são bem
mais realistas, corporais. Você
nota em filmes como "O Albergue" ou "Grindhouse" a preferência pelo látex, o que mostra
o desejo nostálgico de voltar a
um tempo em que a brutalidade era mais encorpada.
FOLHA - Sam Raimi disse que é a
quebra de tabus que move os filmes
de horror. O sr. concorda?
LOWENSTEIN - Acho que a quebra de tabus é central para o gênero, mas a maneira como eles
são quebrados varia muito.
Pense em momentos importantes, como 1968, que teve "A
Noite dos Mortos-Vivos" e "O
Bebê de Rosemary", dois filmes
bem diferentes, um independente, outro de um grande estúdio. Ambos estabeleceram
novidades, e ainda sentimos
suas influências, mas não podemos dizer que quebraram tabus
da mesma forma.
FOLHA - Como se explica o imenso
sucesso desses novos filmes?
LOWENSTEIN - Há vários fatores,
um deles é que foram lançados
em uma época em que havia
uma demanda não atendida
por violência gráfica nas telas.
Havia poucos filmes dispostos
a explorar a parte mais extrema
da categoria R da censura [em
que menores de 17 anos precisam da companhia de um adulto], o modelo em voga era o da
série "Pânico", de filmes mais
leves. "Jogos Mortais" e "O Albergue" apostaram nesse nicho, e estavam certos.
FOLHA - O que o sr. acha do novo
terror asiático?
LOWENSTEIN - Vejo um paralelo
forte entre os filmes de horror
japoneses da década de 90 até
hoje com os americanos dos
anos 60 e 70. Além de se parecerem na popularidade que
atingiram, ambos os ciclos surgiram a partir de crises sociais
seríssimas. Nos EUA, foram a
Guerra do Vietnã e o movimento dos direitos civis, enquanto
no Japão foi o esfacelamento
da economia. Não surpreende
que filmes como "O Chamado",
"O Grito" e "Pulso" tenham notável ligação com a então fracassada economia baseada na
tecnologia -são filmes obcecados por celulares, TVs, vídeos.
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