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Comentário
Músico devorou poemas de fôlego
No repertório do compositor, rimas, aliterações e letras infindáveis reverenciam legado dos trovadores medievais
CARLOS RENNÓ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nos anos 60, Augusto de
Campos viu em Caetano Veloso e Gilberto
Gil dois sucessores, nos tempos
modernos, dos trovadores provençais da Idade Média. Nos
70, Allen Ginsberg aludiu aos
"bardos e menestréis" medievais a propósito de Bob Dylan.
Canções: assim eram chamados os poemas trovadorescos
(momento em que poesia e música estiveram muito próximas), todos cantados. Os shows
que Dylan faz nesta semana no
Brasil podem ser vistos como
concertos de "canções", na
acepção poético-literária do
termo. Não é outra coisa senão
uma sucessão delas cada apresentação sua.
Toda noite o repertório muda. Uns dois terços das músicas
são antigas, entre elas exemplares daquelas coisas inefáveis,
sempre vivas na memória e duráveis no tempo: "Like a Rolling Stone", "It's Alright, Ma",
"Blowin" in the Wind"... De certo, isto: umas seis composições,
que variam a cada show, são do
novo disco.
"Modern Times" é obra da
maturidade, reunião de "songs
of experience" com certo pendor para os tons graves, combinando a voz do letrista e a do
cantor hoje; para atmosferas
misteriosas, monólogos reflexivos sobre o sentido da vida e o
destino de cada um. Canções-pensamento. Como as baladas
"When the Deal Goes Down" e
"Workingman's Blues".
Mas há também lugar para
rock'n'roll e rhythm'n'blues.
Para canções de amor sobre
mulheres difíceis; canções de
trabalho rural; cenas da natureza. Para o comentário crítico-social e imagens assim: "Algumas pessoas na estrada carregando tudo que têm/ Algumas
pessoas com pele bastante apenas para cobrir seus ossos".
A força das imagens ainda é
uma das marcas da poesia de
Dylan, assim como a onipresença das rimas, as aliterações
faiscantes e a eloquência, a
abundância dos versos.
Dylan Thomas e Rimbaud
Ninguém escreveu letras tão
longas antes dele (nem depois).
Cole Porter, Ira Gershwin e Lorenz Hart as praticaram, mas
elas não são regra em suas
obras. Nem na de Woody Guthrie, menos ainda na de Robert
Johnson, para citar duas grandes influências de Dylan.
De onde então ele as "tirou"?
Da poesia dos livros. Na sua formação, o jovem que adotou seu
nome artístico por causa de
Dylan Thomas e incluiu Rimbaud em seu altar, se acostumou a devorar e a decorar poemas de longo fôlego, como conta em suas "Chronicles".
Em "No Direction Home", o
documentário de Martin Scorsese, Ginsberg revela que, ao
ouvi-lo pela primeira vez (cantando "A Hard Rain's A-Gonna
Fall"), chorou "porque pareceu
que a tocha havia sido passada
para uma outra geração".
Dylan já afirmou que não é
poeta. Que poeta é (era) Ginsberg. Chico Buarque também já
fez questão de dizer que não é
poeta -que poetas são Drummond, Bandeira... Mas não
adianta. Nós não acreditamos.
Continuamos a vê-los também
como poetas. Poetas da canção.
Mestres da palavra cantada.
CARLOS RENNÓ é letrista, produtor e jornalista
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