São Paulo, quarta-feira, 05 de março de 2008

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Comentário

Músico devorou poemas de fôlego

No repertório do compositor, rimas, aliterações e letras infindáveis reverenciam legado dos trovadores medievais

CARLOS RENNÓ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nos anos 60, Augusto de Campos viu em Caetano Veloso e Gilberto Gil dois sucessores, nos tempos modernos, dos trovadores provençais da Idade Média. Nos 70, Allen Ginsberg aludiu aos "bardos e menestréis" medievais a propósito de Bob Dylan.
Canções: assim eram chamados os poemas trovadorescos (momento em que poesia e música estiveram muito próximas), todos cantados. Os shows que Dylan faz nesta semana no Brasil podem ser vistos como concertos de "canções", na acepção poético-literária do termo. Não é outra coisa senão uma sucessão delas cada apresentação sua.
Toda noite o repertório muda. Uns dois terços das músicas são antigas, entre elas exemplares daquelas coisas inefáveis, sempre vivas na memória e duráveis no tempo: "Like a Rolling Stone", "It's Alright, Ma", "Blowin" in the Wind"... De certo, isto: umas seis composições, que variam a cada show, são do novo disco.
"Modern Times" é obra da maturidade, reunião de "songs of experience" com certo pendor para os tons graves, combinando a voz do letrista e a do cantor hoje; para atmosferas misteriosas, monólogos reflexivos sobre o sentido da vida e o destino de cada um. Canções-pensamento. Como as baladas "When the Deal Goes Down" e "Workingman's Blues".
Mas há também lugar para rock'n'roll e rhythm'n'blues. Para canções de amor sobre mulheres difíceis; canções de trabalho rural; cenas da natureza. Para o comentário crítico-social e imagens assim: "Algumas pessoas na estrada carregando tudo que têm/ Algumas pessoas com pele bastante apenas para cobrir seus ossos".
A força das imagens ainda é uma das marcas da poesia de Dylan, assim como a onipresença das rimas, as aliterações faiscantes e a eloquência, a abundância dos versos.

Dylan Thomas e Rimbaud
Ninguém escreveu letras tão longas antes dele (nem depois). Cole Porter, Ira Gershwin e Lorenz Hart as praticaram, mas elas não são regra em suas obras. Nem na de Woody Guthrie, menos ainda na de Robert Johnson, para citar duas grandes influências de Dylan. De onde então ele as "tirou"?
Da poesia dos livros. Na sua formação, o jovem que adotou seu nome artístico por causa de Dylan Thomas e incluiu Rimbaud em seu altar, se acostumou a devorar e a decorar poemas de longo fôlego, como conta em suas "Chronicles".
Em "No Direction Home", o documentário de Martin Scorsese, Ginsberg revela que, ao ouvi-lo pela primeira vez (cantando "A Hard Rain's A-Gonna Fall"), chorou "porque pareceu que a tocha havia sido passada para uma outra geração".
Dylan já afirmou que não é poeta. Que poeta é (era) Ginsberg. Chico Buarque também já fez questão de dizer que não é poeta -que poetas são Drummond, Bandeira... Mas não adianta. Nós não acreditamos.
Continuamos a vê-los também como poetas. Poetas da canção. Mestres da palavra cantada.


CARLOS RENNÓ é letrista, produtor e jornalista

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