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São Paulo, sábado, 05 de abril de 2003

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RODAPÉ

Lévinas e a face ética do Outro

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da moral nos momentos de aflição; mas a ciência dos costumes me consolará sempre da ignorância das ciências exteriores." Esta frase de Pascal descreve um corte que, desde o início da era moderna, separa a reflexão filosófica e a meditação moral. De um lado, um pensamento que investiga as condições do conhecimento; de outro, uma meditação sobre nossos abismos interiores e os dilemas éticos.
Não é preciso ser um "scholar" para perceber que a filosofia sempre olhou com desconfiança para esse tipo de pensamento que se dedica a discutir imperativos morais, afetos, credos e culpas. Por isso, é absolutamente singular na história do pensamento o papel ocupado por Emmanuel Lévinas (1906-1995), cuja biografia acaba de ser lançada na França. Nascido na Lituânia e naturalizado francês, Lévinas é conhecido por ter investigado a ética como uma consequência necessária (e não apenas desejável) do entendimento. Para o autor de "Totalidade e Infinito", a relação de abertura e "não-indiferença" ao Outro (um conceito-chave) está inscrita no próprio desvelamento do "ser".
Como essa terminologia sugere, Lévinas está em linha de continuidade com Husserl e Heidegger. Mais do que isso: Salomon Malka mostra em "Emmanuel Lévinas La Vie et la Trace" (Emmanuel Lévinas - A Vida e o Traço) que foi graças a ele que pensadores como Merleau-Ponty, Sartre e Derrida tomaram contato com a fenomenologia husserliana, através de sua tradução das "Meditações Cartesianas".
Grosso modo, pode-se dizer que Lévinas toma de Husserl a idéia de que "os saberes científicos (...) são "ingênuos", na medida em que são absorvidos pelo objeto, ignoram o problema do estatuto da sua objetividade". Não existe uma consciência vazia perante objetos exteriores, mas uma intencionalidade: "Os modos da consciência que têm acesso aos objetos são essencialmente dependentes da essência dos objetos. O próprio Deus não pode conhecer uma coisa material senão torneando-a. O ser dirige o acesso ao ser", diz Lévinas.
Mas tampouco a "essência dos objetos" se esgota no "ente", no conjunto de propriedades das coisas percebidas. Marcado pela leitura de "Ser e Tempo", Lévinas transforma a ontologia de Heidegger em uma série de reflexões de grande intensidade conceitual. Em "Da Existência ao Existente", por exemplo, ele parte da expressão "il y a" (que em francês indica a existência impessoal de algo e equivale ao "há", em português, e ao "there is", em inglês) para criar uma série de variações sobre o horror que a pura existência das coisas provoca.
"A minha reflexão sobre este tema", declarou Lévinas no livro de entrevistas "Ética e Infinito", "parte de lembranças da infância. Dorme-se sozinho, as pessoas adultas continuam a vida; a criança sente o silêncio do seu quarto de dormir como sussurrante. (...) Algo que se parece com aquilo que se ouve ao aproximarmos do ouvido uma concha vazia, como se o vazio estivesse cheio, como se o silêncio fosse um barulho".
Como fugir desse abandono ontológico em que nosso ser é assombrado pelos seres que o orbitam? É a esta questão que Lévinas vai dedicar sua vida, formulando uma ética que repousa não sobre leis abstratas, mas nessa constatação do Outro que sempre encontramos para além de nós como dado primeiro da existência e que somos obrigados ontologicamente a reconhecer e respeitar.
Existem claras ressonâncias religiosas nesse pensamento e Malka reconstitui a rica atmosfera cultural de sua Lituânia natal (em que conviviam diversas correntes do judaísmo), as atividades de Lévinas como intérprete do Talmud e seu reconhecimento como autoridade espiritual em sucessivos encontros com João Paulo 2º.
Mas, em um pensador preocupado com o rosto do Outro, com a face da alteridade, são as fidelidades pessoais que contam; nesse sentido, o livro de Malka é pródigo em relatos de sua amizade com autores como Jean Wahl, Paul Ricoeur e Maurice Blanchot (1907-2003), de quem o livro reproduz uma das raras fotos conhecidas.


Emmanuel Lévinas La Vie et la Trace
    Autor: Salomon Malka Editora: JC Lattés Quanto: 20 euros (330 págs.) Onde encomendar: Livraria Francesa (tel. 0/xx/11/3849-7956)



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