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RODAPÉ
Lévinas e a face ética do Outro
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"A ciência das coisas exteriores não me consolará
da ignorância da moral nos momentos de aflição; mas a ciência
dos costumes me consolará sempre da ignorância das ciências exteriores." Esta frase de Pascal descreve um corte que, desde o início
da era moderna, separa a reflexão
filosófica e a meditação moral. De
um lado, um pensamento que investiga as condições do conhecimento; de outro, uma meditação
sobre nossos abismos interiores e
os dilemas éticos.
Não é preciso ser um "scholar"
para perceber que a filosofia sempre olhou com desconfiança para
esse tipo de pensamento que se
dedica a discutir imperativos morais, afetos, credos e culpas. Por isso, é absolutamente singular na
história do pensamento o papel
ocupado por Emmanuel Lévinas
(1906-1995), cuja biografia acaba
de ser lançada na França. Nascido
na Lituânia e naturalizado francês, Lévinas é conhecido por ter
investigado a ética como uma
consequência necessária (e não
apenas desejável) do entendimento. Para o autor de "Totalidade e Infinito", a relação de abertura e "não-indiferença" ao Outro
(um conceito-chave) está inscrita
no próprio desvelamento do
"ser".
Como essa terminologia sugere,
Lévinas está em linha de continuidade com Husserl e Heidegger.
Mais do que isso: Salomon Malka
mostra em "Emmanuel Lévinas
La Vie et la Trace" (Emmanuel
Lévinas - A Vida e o Traço) que foi
graças a ele que pensadores como
Merleau-Ponty, Sartre e Derrida
tomaram contato com a fenomenologia husserliana, através de
sua tradução das "Meditações
Cartesianas".
Grosso modo, pode-se dizer
que Lévinas toma de Husserl a
idéia de que "os saberes científicos (...) são "ingênuos", na medida
em que são absorvidos pelo objeto, ignoram o problema do estatuto da sua objetividade". Não
existe uma consciência vazia perante objetos exteriores, mas uma
intencionalidade: "Os modos da
consciência que têm acesso aos
objetos são essencialmente dependentes da essência dos objetos. O próprio Deus não pode conhecer uma coisa material senão
torneando-a. O ser dirige o acesso
ao ser", diz Lévinas.
Mas tampouco a "essência dos
objetos" se esgota no "ente", no
conjunto de propriedades das
coisas percebidas. Marcado pela
leitura de "Ser e Tempo", Lévinas
transforma a ontologia de Heidegger em uma série de reflexões
de grande intensidade conceitual.
Em "Da Existência ao Existente",
por exemplo, ele parte da expressão "il y a" (que em francês indica
a existência impessoal de algo e
equivale ao "há", em português, e
ao "there is", em inglês) para criar
uma série de variações sobre o
horror que a pura existência das
coisas provoca.
"A minha reflexão sobre este tema", declarou Lévinas no livro de
entrevistas "Ética e Infinito",
"parte de lembranças da infância.
Dorme-se sozinho, as pessoas
adultas continuam a vida; a criança sente o silêncio do seu quarto
de dormir como sussurrante. (...)
Algo que se parece com aquilo
que se ouve ao aproximarmos do
ouvido uma concha vazia, como
se o vazio estivesse cheio, como se
o silêncio fosse um barulho".
Como fugir desse abandono ontológico em que nosso ser é assombrado pelos seres que o orbitam? É a esta questão que Lévinas
vai dedicar sua vida, formulando
uma ética que repousa não sobre
leis abstratas, mas nessa constatação do Outro que sempre encontramos para além de nós como
dado primeiro da existência e que
somos obrigados ontologicamente a reconhecer e respeitar.
Existem claras ressonâncias religiosas nesse pensamento e Malka reconstitui a rica atmosfera
cultural de sua Lituânia natal (em
que conviviam diversas correntes
do judaísmo), as atividades de Lévinas como intérprete do Talmud
e seu reconhecimento como autoridade espiritual em sucessivos
encontros com João Paulo 2º.
Mas, em um pensador preocupado com o rosto do Outro, com a
face da alteridade, são as fidelidades pessoais que contam; nesse
sentido, o livro de Malka é pródigo em relatos de sua amizade com
autores como Jean Wahl, Paul Ricoeur e Maurice Blanchot (1907-2003), de quem o livro reproduz
uma das raras fotos conhecidas.
Emmanuel Lévinas La Vie et la Trace
Autor: Salomon Malka
Editora: JC Lattés
Quanto: 20 euros (330 págs.)
Onde encomendar: Livraria Francesa
(tel. 0/xx/11/3849-7956)
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