São Paulo, sábado, 05 de abril de 2008

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Livros - Crítica/"Mamãe e o Sentido da Vida"

Yalom transforma psicoterapia em literatura de entretenimento

Autor lança "Mamãe e o Sentido da Vida", que une ficção e sua experiência de consultório

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os livros do psiquiatra Irvin Yalom, professor emérito de Stanford, são um fenômeno editorial de vendas. Os números brasileiros são formidáveis: "Quando Nietzsche Chorou", lançado no Brasil em 2003, vendeu 521,8 mil exemplares; "A Cura de Schopenhauer", de 2005, 119,2 mil; "Mentiras no Divã", de 2006, 108 mil; "Os Desafios da Terapia", lançado em 2007, já vendeu 43,2 mil exemplares; "O Carrasco do Amor", também do ano passado, 18 mil exemplares. Sai agora "Mamãe e o Sentido da Vida", que já aparece entre os dez mais. Yalom anda, portanto, na casa dos 820 mil exemplares vendidos, só no Brasil. Quais as razões de tanto sucesso? A pergunta martela em minha cabeça.
Vamos, então, por partes. Em "Mamãe..." elas são três. A primeira é autobiográfica e contém um capítulo único, focando conflitos e incompreensões do autor com a mãe morta, que o assombra em sonhos. Os três capítulos seguintes formam um bloco que relata sessões de terapia de grupo com pacientes terminais de câncer, anoréxicos e psicóticos, além de um caso de terapia de luto, com uma paciente brilhante, que se recusava a viver após a morte do marido.
A última parte do livro, que se apresenta mais abertamente como ficcional, refere dois casos terapêuticos divertidos, narrados pelo psiquiatra Ernest Lash, alter ego ficcional de Irvin, que já aparecera em "Mentiras no Divã". O nome poderia ser traduzido por "Ernesto Ferida". Ou "Honório Ferrão", para manter em português o tipo de ferida produzida pelo chicote desabrido da verdade. Lash funciona como aqueles mágicos, supostamente francos e odiados pelo resto da categoria, que revelam os truques baixos por trás da maravilha das mágicas.
Num dos seus contos, narra o efeito sobre a terapia de um terrível engano que cometera ao entregar desapercebidamente a uma paciente, junto com a fita da gravação da sessão, as suas próprias notas ditadas para um seminário de "contratransferência". Ali, anotara seu tédio mortal por ela, na qual mesmo o atrativo de grandes seios a pressionar os botões da blusa se perde em meio à sucessão de lamúrias repetitivas.
No outro, Lash narra a história de uma mulher que padece da maldição, lançada por um gato húngaro a sua avó, de jamais acordar ao lado do amante a quem se entregasse na noite anterior. É este o caso em que a escrita de Irvin adquire maior liberdade face ao andamento terapêutico, mas, infelizmente, não o suficiente.
Ao cabo, há uma explicação para tudo o que acontece. O simples fato de ser assim, ou de que os fatos se dêem como suporte para a explicação aterrissa a narrativa numa planura de previsibilidades.

Desprezo à teoria
Percebo então que, em termos de psicoterapia, a relevância e a urgência do aqui-e-agora do consultório, defendido por Yalom, existem no seu texto apenas como idéia. Ou pior: como frase ou puro mote compreensivo, que não recebe consistência da teoria (que, no fundo, despreza ou subestima como arrogância e formalismo), mas tampouco se alimenta da produção da "presença" das personagens e situações evocadas (pois, para isso, precisariam ter mais consistência literária).
Neste ponto, me pergunto se o que nos resta da leitura de Yalom não é justamente o que ele diz criticar: redução da conversa a informação e conselho (duvidosamente) úteis. E se assim for, tem de estar também aí, nesse esvaziamento que vai desaguar na trapaça da auto-ajuda, a resposta para o volume extraordinário das suas vendas.
Ao imediatismo do sistema comercial de saúde se responde com o imediatismo da literatura de entretenimento, que vende a sensação de bem-estar e de conhecimento auto-satisfatório que, a rigor, não tem nada a ver com êxito terapêutico real, assim como é contradição em termos com a literatura, que simplesmente exclui qualquer idéia de bem-estar, quanto mais de cura.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp)

MAMÃE E O SENTIDO DA VIDA
Autor:
Irvin D. Yalom
Tradução: Elvira Serapicos
Editora: Agir
Quanto: R$ 34,90 (248 págs.)
Avaliação: regular


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