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REEDIÇÕES
Novelas "Morte em Veneza" e "Tonio Kröger" são relançadas em volume único
Mann se esconde atrás da ficção
PRISCILA FIGUEIREDO
especial para a Folha
A editora Nova
Fronteira inaugura
a reedição das
obras de Thomas
Mann com um volume que reúne
"Morte em Veneza" e "Tonio
Kröger", traduzidas por Eloísa
Ferreira Araújo Silva. Essas narrativas figuram entre as mais importantes do escritor e da novelística alemã. Elas compartilham temas e obsessões, mas "Morte em
Veneza", publicada em 1912,
aprofunda "Tonio Kröger" e, apesar da moldura menor que a novela proporciona em relação ao
romance, utiliza a paródia, transita entre o registro realista-psicológico e o mítico, dá tratamento
sinfônico às contradições de seu
personagem principal. Isso repercute no fraseado, que ganha ondulações novas e um colorido
bem mais matizado que o do texto anterior, devido ao poder sinestésico avassalador que uma
Veneza putrefata e orientalizada
exerce sobre os sentidos e o espírito de Aschenbach.
Thomas Mann era filho de cônsul, descendente de uma família
de veneráveis burgueses alemães
e de uma brasileira belíssima,
com vocação para a arte, Júlia da
Silva Bruhns, que passou os primeiros cinco anos de sua vida em
Angra dos Reis, tendo sido levada
depois, junto com as irmãs, para a
longínqua Lübeck.
Anatol Rosenfeld abordou em
vários ensaios sobre o escritor esse motivo biográfico, que retorna
disfarçado e ampliado psicologicamente em toda a obra de Thomas Mann e é convertido num
símbolo da posição precária ocupada por seus personagens, entre
o empenho burguês pela vida e
pela ação e a irresistibilidade das
energias irracionais e dissolventes. Nesse sentido, a presença de
elementos como o sono, o mar, a
mulher ou o rapaz de origem exótica (húngara, russa, indígena
etc.) configurariam o elemento
estranho que uma vez se infiltrara
no seio da família luterana, tradicionalmente marcada pela "normalidade burguesa" e pela ética
do trabalho, e assinalara o início
de um irrefreável processo degenerativo.
Mas o que era decadência também poderia significar a expansão máxima das possibilidades da
vida e do entendimento. E de uma
estirpe solar, afeita ao comércio
diurno e ao protocolo social, saíram dois artistas como Thomas e
Heinrich Mann, sintomas de degenerescência, de aperfeiçoamento contínuo ou de ambos -talvez
reflexão e cisão do que fora uma
feliz unidade.
O autor de "Os Buddenbroocks" não negará, no entanto,
sua origem paterna, ou melhor, o
que ela simbolizava para sua imaginação, e não vai necessariamente, como um romântico alemão,
olhar o mundo de um andar acima e glosar infinitamente o seu
vazio e sua dúvida. Em certa altura de "Morte em Veneza", Aschenbach observa como ele reproduzira a mentalidade do pai
na condução do ofício de artista,
realizado metodicamente, com
obstinação e severidade burguesa. É nesse aspecto que Thomas
Mann rejeitava todo libertinismo
romântico, toda boemia, por
mais que seus personagens tenham uma atração imensa pelo
caos e pela doença e se sintam por
vezes seres especiais (porque ainda é forte aqui a concepção romântica de artista).
Não é à toa que ele dedicou um
ensaio fervoroso a Tchecov, escritor dos mais trabalhadores, sem a
autocomplacência dos "eleitos".
Basta ver o professor do "Tio Vânia", um intelectual que sempre
viveu da atividade dos outros e
que, no entanto, não produziu
nada de intelectualmente relevante. Vânia tem uma vida de boi,
trabalha literalmente feito um
burro de carga (dos livros vãos escritos pelo professor) e assim até o
fim, como o autor russo, ainda
que a beleza e o ócio adorável de
Helena de fato exerçam poder
dissolvente sobre ele.
Thomas Mann é, como Tchecov, artista da ironia temperada
pelo tato (burguês), como diria o
jovem Lukács. Porque não se trata propriamente da ironia romântica, em que o sujeito nega a sociedade e busca preservar a poesia de
seu coração de toda corrupção e
da prosa dos seres normais e sociáveis. Trata-se, antes, de uma
disposição amorosa, de uma "ironia erótica", na expressão do próprio Thomas Mann, e isso está na
base de sua concepção de romance. É um olhar amplo, assimilativo, realista, não misantropo, que
acata o mundo e admira, portanto, os que têm uma postura graciosa em sociedade.
Assim como Tonio Kröger apenas num momento se sente superior aos belos e burgueses Inge e
Hans, para depois lamentar profundamente que sua fama de escritor não tenha atraído a atenção
deles, que, felizes e sem dar por si,
continuam a passear os olhos
num livro sobre cavalos, e aos
quais, na verdade, sempre invejou. Porque eles são a encarnação
da Graça, e só quem se tornou refém do ressentimento não suportaria que eles se destacassem numa reunião social, simples que
são!, e despertassem a admiração
de todos por seu gesto delicado e
sua fronte luminosa.
No final da novela, Tonio/Thomas permanece um "déclassé",
fleumático demais para os artistas
e esquisito demais para os burgueses. Uma ternura profunda
por personagens ridículos e trágicos como ele, sobrepujada, não
obstante, pelo amor à vida comum de um Hans. Um amor, é
verdade, com "um leve toque de
desprezo". Isso será confessado
em tom paródico em "Morte em
Veneza", no diálogo entre Sócrates, o sábio, e Fedro, a graça. Essa
combinação de desprezo e ternura é virtuosisticamente enunciada
quando o velho apaixonado diz
ao moço que "o amante é mais divino que o amado, pois o deus está presente no primeiro, mas não
no outro- talvez o pensamento
mais terno e irônico que jamais
foi concebido".
Priscila Figueiredo é formada em germanística e mestranda em literatura brasileira
na USP
Avaliação:
Livro: Morte em Veneza/Tonio Kröger
Autor: Thomas Mann
Tradutora: Eloísa Ferreira Araújo Silva
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 23 (184 págs.)
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