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RESENHA DA SEMANA
Conto de pescador
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
A pesca não é só um tema
frequente nos textos de Ernest Hemingway (1899-1961),
que no seu tempo, além de escritor e caçador, também foi adepto desse esporte da paciência.
Nos seus contos, a pesca não é
apenas representação da vida
masculina e aventureira, da inserção viril do homem na natureza, que o autor tanto prezava e
com que procurou ser identificado publicamente. Ela é a metáfora que os define.
A pesca depende de um grau
de suposição por parte do pescador que os contos de Hemingway também exigem do leitor. É
preciso acreditar que, no fundo,
algo esteja acontecendo por trás
da aparente inação, a despeito
da placidez da superfície: "A
sensação de vida na ponta da linha".
Para que o leitor não desanime, como faria um pescador
inexperiente, o autor deixa sinais -na ambiguidade dos motivos que levam um homem a
carregar uma espingarda em casa depois de um desentendimento com outro, por exemplo- de que tudo está sempre
por um fio.
A idéia é que a violência contida e a tensão subjacente sejam
intuídas pela descrição sucessiva das cenas ou pela sincronia
de acontecimentos díspares. O
texto não deve julgar, mas propor ao leitor observar a ação e
senti-la com base na descrição
dos fatos, como o pescador que
não vê o peixe, mas o sente pela
fisgada.
A técnica fez de Hemingway
um dos precursores em seu país
de uma tradição realista que terminou por se desenvolver e impor como estilo hegemônico,
como modelo e parâmetro de
qualidade para a prosa de ficção
que se ensina hoje em boa parte
das escolas de criação literária
nos Estados Unidos. A ausência
dos juízos de valor do narrador e
de uma moral aparente se tornou um modelo de elegância e
bom gosto para a prosa contemporânea.
Buscar a manifestação dos
sentimentos mais intensos na
banalidade das aparências e do
cotidiano foi o que contistas como John Cheever e Raymond
Carver acabaram levando à perfeição. E Hemingway parece ter
tido seu papel na formação dessa escola. Embora seus contos,
ao contrário dos de Cheever e
Carver, ainda precisassem manifestar a defesa desse ponto de
vista, como na metáfora um tanto evidente da pesca. Eles ainda
tinham qualquer coisa de manifesto.
Em "Um Dia Esperando", por
exemplo, o escritor conta a história de um menino com febre
alta, que acha que vai morrer:
"O dia inteiro ele esperou morrer, desde as nove da manhã (...)
e no dia seguinte ele estava descontraído e chorava fácil com
coisas pequeninas que não tinham a menor importância". É
a expressão do lado heróico do
autor: a sensibilidade para as
coisas banais vem da proximidade da morte.
Nesse sentido, a sincronia de
acontecimentos que os personagens desconhecem é por vezes
fundamental, porque evidencia
para o leitor a imponderabilidade da morte e o seu desconhecimento por parte dos que serão
atingidos: "Fechou os olhos e,
em vez do homem de barba que
olhava para ele pela mira do fuzil, com toda a calma antes de
puxar o gatilho, (...) ele viu uma
casa amarela, comprida, com
estábulo baixo e o rio muito
mais baixo do que era e mais parado".
Também é comum nesses
contos a contraposição de duas
imagens ou reações totalmente
opostas em relação às mesmas
coisas, como as mulheres que se
recusam a largar o corpo dos filhos mortos na guerra, enquanto as prostitutas jogam os bebês
indesejados no cais do porto. O
escritor trabalha com a tensão
da defasagem, de modo que os
efeitos dramáticos já não precisam vir de suas opiniões, mas
das simples descrições ou confrontos de acontecimentos. Se
há moral, ela está embutida.
Ao deixar o extraordinário
passar despercebido no meio de
banalidades, o texto tenta mostrar que as coisas podem não ser
tão banais quanto parecem. E
destaca o surpreendente por
dissimulação, narrando-o como
se fosse insignificante.
Muitas vezes, porém, a insignificância é tanta que se torna
desconcertante. Pois fica difícil
saber se o extraordinário desses
textos se perdeu ou se nunca
existiu; se, com os anos, a técnica foi de tal forma incorporada
por outros autores a ponto de se
transformar em lugar-comum
ou se desde o início o que houve
foi apenas uma valorização excessiva do que na época parecia
inovador.
Contos de Hemingway -
Volume 1
Autor: Ernest Hemingway
Tradutor: José J. Veiga
Editora: Bertrand Brasil
Preço: R$ 27 (205 págs.)
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