São Paulo, sábado, 05 de maio de 2001

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LITERATURA

Lincoln Gordon lança "Brazil's Second Chance", em que também define as eleições de 2002 como cruciais ao país

Ex-embaixador dos EUA revê golpe de 64

MARCIO AITH
DE WASHINGTON

Lincoln Gordon, embaixador norte-americano no Brasil entre 1961 e 1966, diz que faria duas coisas diferentes se pudesse voltar no tempo e ao cargo. "Em 1962, não teria sugerido à CIA financiar campanhas de deputados brasileiros simpáticos aos EUA; em 1964, não teria apoiado entusiasticamente o golpe de 64 tão cedo, apenas dois dias depois de sua deflagração, sem a confirmação de que João Goulart havia deixado o país e, portanto, o cargo."
Aos 87 anos, Gordon está finalmente lançando, nos EUA, seu primeiro livro sobre o Brasil, editado pelo Instituto Brookings. "Brazil's Second Chance: En Route toward the First World" ("A Segunda Chance do Brasil: A Caminho do Primeiro Mundo") era um projeto antigo. Começou a ser escrito há 15 anos e foi interrompido durante os anos 80, durante a chamada "década perdida".
Engana-se quem espera encontrar, nas 229 páginas da publicação, novidades sobre o envolvimento dos EUA no golpe. Nos poucos trechos em que menciona o assunto, o embaixador mantém sua versão de sempre: os EUA desejavam o golpe, mas não sabiam de sua data com antecipação, muito menos o financiaram.
As duas coisas que Gordon faria diferentemente tampouco são um arrependimento, mas uma simples reflexão, quase protocolar, feita durante entrevista à Folha (elas não constam do livro).
Afinal de contas, o embaixador continua achando que a deposição do presidente Goulart, a qual testemunhou e aplaudiu, foi legítima (segundo Gordon, o golpe teria sido preventivo: Jango pretendia perpetuar-se no poder por meio de um autogolpe, similar ao de Getúlio Vargas em 1937).
No entanto a reflexão de Gordon é relevante porque foi acompanhada de algumas revelações. Uma delas é a de que o jornalista Samuel Wainer, fundador do extinto diário "Última Hora" e amigo de Goulart, teria passado a Gordon informações sobre o estado de espírito do presidente até poucos meses antes do golpe.
"Wainer nunca me pediu nada, mas acho que estava interessado em garantir um asilo nos EUA se as coisas dessem errado", disse Gordon.
Mas o livro trata de outro assunto. Gordon veste a pele de economista e observador neutro para refletir a história político-econômica do Brasil. O ex-embaixador demarca as eleições de 2002 como a segunda chance crucial do Brasil recente: o ponto em que os brasileiros definirão se mantêm a diretriz do presidente FHC -e, sob sua lógica, se entram no Primeiro Mundo- ou se repetem vícios antigos, os mesmos que fizeram o país perder-se na primeira chance (durante o governo JK).

Folha - Em seu livro, o sr. diz que a instabilidade política no Brasil tem sido um dos motivos que impediram a ascensão do país ao status de país de primeira linha. O sr. menciona o fato de só dois presidentes civis terem completado seus mandatos desde 1950. Será que o país não teria tido uma vida democrática mais longa não fosse o golpe apoiado pelo sr. e pelos EUA?
Lincoln Gordon -
A instabilidade política na América Latina é uma história antiga e não nasceu com o golpe, embora o regime militar tenha se perpetuado de forma danosa à democracia no país. Quando eu era embaixador, ou secretário de Estado assistente -agora não me lembro mais-, um comitê do Legislativo nos pediu uma lista com todos os golpes na América Latina desde a independência de Portugal e da Espanha. É uma lista deprimente. A Bolívia é o pior caso. Durante décadas, teve em média um golpe por ano. O Brasil é um país relativamente estável. Durante o império, apenas dois imperadores reinaram entre 1882 (Independência) e 1889 (Proclamação da República). Vários presidentes completaram seus mandatos durante a primeira república.

Folha - O sr. elogia os esforços do presidente Fernando Henrique Cardoso para criar partidos com ideologias claras. O sr. considera o presidente um social-democrata?
Gordon -
Quando o presidente saiu do PMDB para criar o PSDB, a essência da mudança foi criar um partido com uma identidade similar à dos países europeus de centro-esquerda. Porém o PSDB foi pego pela crise inflacionária, que exigiu um duro controle fiscal e corte de gastos. Os objetivos sociais típicos de um partido de centro-esquerda, do tipo europeu, não puderam ser cumpridos. O que vemos hoje -e vimos perto das eleições de 1998- é um esforço de Cardoso para introduzir ao menos alguns elementos sociais.

Folha - Quais elementos sociais o sr. consegue ver no governo FHC?
Gordon -
O ministro Paulo Renato (Educação) fez um trabalho excelente com a ajuda do BID.

Folha - O sr. diz que o Brasil tem uma opção a fazer entre o crescimento responsável e a tentação populista. Como o sr. vê as esquerdas hoje? Lula, por exemplo?
Gordon -
É uma personalidade que se desenvolve. Hoje, ele já não é o mesmo político de 13 anos atrás, quando disputou a presidência com Fernando Collor de Mello. Ele diz ter mudado. Mas me preocupa muito a atuação do PT no Congresso. O partido foi contrário a todas as privatizações e a projetos modernizantes.

Folha - O sr. é um democrata. Não acha que o golpe militar de 1964 foi uma violência institucional?
Gordon -
Sim, tudo indicava que Goulart iria tomar uma decisão extrema. Cerca de três meses antes do golpe, Samuel Wainer me telefonou na embaixada dizendo ter tido um encontro muito interessante com Jango e pedindo para me encontrar. Wainer relatou que o presidente estava muito nervoso, andando de um lado para o outro, como um tigre num cativeiro, e dando socos em cima de uma mesa. Ele dizia estar pressionado e ter três opções: ficar como um presidente fraco, renunciar ou tomar uma decisão extrema. Fiquei com a impressão de que ele tentaria algo como um golpe feito o de Getúlio em 1937.

Folha - Qual era a participação da CIA no Brasil na época?
Gordon -
Nossa preocupação era descobrir a influência comunista. Pegar informações sobre conexões com a URSS e com a China. Geralmente o agente da CIA tinha mais fluência em português e era conhecido como um diplomata nas cidades onde morava.

Folha - A CIA investigava Jango?
Gordon -
Investigamos o número de fazendas que ele tinha. Acho que umas cinco só no Sul. Nunca achei que Jango fosse comunista. Ele, na verdade, achava que podia seguir os passos de Getúlio Vargas. Mas ele não era Getúlio.



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