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Crítica/coletânea
Clarice "repórter" inibe entrevistados
Coletânea "Clarice Lispector: Entrevistas" mostra autora fazendo perguntas de adolescente e recebendo declarações de amor
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Entrevistar escritores retraídos (como Rubem
Braga), terrivelmente
lacônicos (como Pablo Neruda)
ou terrivelmente prolixos (como Nélida Piñon) não devia ser
fácil. Mas a situação desses três
autores (e de outras dezenas de
personalidades dos anos 60 e
70, de Jorge Amado a Zagallo)
era ainda mais difícil. A entrevistadora, famosa pelo ensimesmamento de seus contos e
romances, chamava-se Clarice
Lispector.
Trabalhando como repórter
para o "Jornal do Brasil" e para
as revistas "Fatos e Fotos" e
"Manchete", a autora de "Perto
do Coração Selvagem" era capaz de perguntas de adolescente, que costumava repetir a cada entrevistado: "o que é o
amor?" ou "qual a coisa mais
importante do mundo?"
Poucos autores conseguem
ser originais diante de indagações desse tipo. "Amor é dádiva, renúncia de si mesmo na
aceitação do outro", responde
Fernando Sabino. Sem muita
paciência, Neruda responde
que "o amor é o amor". Chico
Buarque sai pela tangente: "não
sei definir, e você?" Ao que Clarice Lispector responde: "nem
eu". Zagallo, depois de pensar
um tempo, dá sua versão: "é um
sentimento recíproco".
"É bom estar apaixonada?",
pergunta Clarice, banalmente,
a Elis Regina. Banalmente, a
cantora responde: "Bem melhor do que não sentir nada!"
Não por acaso, Clarice pede a
Pablo Neruda que diga alguma
coisa surpreendente. O poeta
chileno responde: "748". Surpresas mais autênticas, felizmente, acontecem de quando
em quando.
Perguntando a Alceu de
Amoroso Lima (1893-1983) o
que ele sentiu diante das viagens à Lua, Clarice Lispector
ouve o seguinte: "Não mais do
que adolescente, em 1909, estando em Berlim, ao ler nos jornais que Blériot atravessara o
Canal da Mancha de avião!"
Declarações de amor
A maior frustração de Fernando Sabino é a de não ter sido um santo. Millôr considera-se, no fundo, "um atleta frustrado". Jorge Amado joga pôquer e confessa já ter escrito
poesia, "da pior espécie possível". A entrevistadora recebe
também algumas discretas declarações de amor. Tom Jobim
escreve um poema sobre seus
olhos verdes. Hélio Pellegrino,
numa das melhores entrevistas
do livro, diz que se lhe fossem
dadas outras vidas para viver,
numa delas seria marido de
Clarice Lispector, "a quem me
dedicaria com veludosa e insone dedicação". Referindo-se ao
acidente que Clarice sofreu em
1967, Vinicius de Moraes murmura: "tenho tanta ternura pela sua mão queimada..."
Esta edição das entrevistas
de Clarice Lispector, organizada por Claire Williams, difere
em boa medida de uma coletânea anterior, feita pela própria
autora. São agora 42 entrevistas, das quais apenas 23 já haviam sido publicadas em "De
Corpo Inteiro". Da nova edição,
não constam nomes como Clóvis Bornay, Benedito Nunes,
Mário Schemberg e João Paulo
dos Reis Velloso. Entram Paulo
Autran, João Saldanha, Lygia
Fagundes Telles e Ferreira Gullar, entre outros.
O mais desbocado e extremo
de todos eles é sem dúvida o
cronista José Carlos de Oliveira, que, a bordo de muitos uísques, termina quase brigado
com a entrevistadora, de quem
se queixa: "Clarice Lispector,
em vez de comer e beber comigo, tem que pensar em entrevistas para poder sobreviver".
Com certa amargura, resumiu
o espírito de todo o livro.
CLARICE LISPECTOR: ENTREVISTAS
Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Quanto: Preço a definir (232 págs.)
Avaliação: regular
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