UOL


São Paulo, quinta-feira, 05 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Alma na lama

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Matheus Nachtergaele em cena de "Woyzeck, o Brasileiro", peça inspirada em texto do alemão Georg Büchner (1813-1837)



"Woyzeck, o Brasileiro", adaptação de peça do século 19, dialoga com contexto social de hoje


VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Galinhas ciscam num canto do chão de terra batida, ao lado de espadas-de-são-jorge. Noutro canto, troncos de árvores secos. Noutro, o canto de pisar o barro. Noutro, o forno manual. E no centro de tudo, a maromba, uma máquina arcaica que molda o tijolo baiano oriundo da lama.
Eis a Olaria Brasil, a fábrica de tijolos para onde foi enviado o soldado raso do escritor alemão Georg Büchner (1813-1837) no espetáculo "Woyzeck, o Brasileiro". Ele escreveu a peça, mas não colocou um ponto final. Morreu antes, aos 23 anos.
O cenário-instalação criado por Marcos Pedroso (da trilogia bíblica do Teatro da Vertigem) ocupa um galpão do Sesc Belenzinho, na zona leste de São Paulo, e deixa claro, de chofre, que a encenação de Cibele Forjaz transpõe o texto alemão do século 19, pilar do moderno teatro mundial em pleno pré-capitalismo, para um Brasil profundo do presente.
Aqui, Woyzeck não é o soldado raso, mas o operário alienado, explorado. O contexto de opressão, no entanto, é similar. A dramaturgia de Fernando Bonassi, a partir de adaptação que realizou com Forjaz e o ator Matheus Nachtergaele, pretende dar conta desse sujeito que é massacrado pelo trabalho excessivo, pela saúde deteriorada, pela mulher que o trai e até pela consciência que lhe surrupiam.
"É um processo de enlouquecimento de um homem pelas suas circunstâncias", diz Forjaz, 36. E que circunstâncias, sobretudo em tempos do colapso do emprego.
Sugestão que Nachtergaele colheu numa viagem pelos rincões do Amazonas, durante a gravação de um filme, a olaria serve como ponte para o mal-estar da civilização contemporânea. Segundo a diretora, a ação poderia se passar numa linha de montagem de carros, e a alienação, em todos os sentidos, permaneceria arraigada, como há séculos.
Woyzeck (Nachtergaele) é humilhado pelos superiores, usado como cobaia por um médico. Um homem patético, grotesco, que se vê transformado em sua miserável condição de bicho.
"Ele foi buscar no lugar errado a única coisa que lhe desse sentido à vida: no ciúme", afirma Nachtergaele, 34, a despeito do desfecho trágico que espelha os desvãos do amor romântico. "Onde ele pensou encontrar a salvação, encontrou perdição."
Para o ator, que também encampa a produção, Woyzeck é seu personagem "mais complicado", ele que já protagonizou "O Livro de Jó" (92). O personagem encerra contradições em sua "escravatura", massa de manobra que não vislumbra virtude alguma na condição de pobre.
"Os operários da olaria fazem a matéria-prima para os shoppings que são construídos, mas nos quais são barrados; erguem hospitais nos quais não são atendidos", diz Nachtergaele.
Ele e Forjaz montaram a peça pela primeira vez em 90, então recém-formados em artes cênicas. Voltam agora, no projeto que passou pelo Rio e chega a São Paulo, movidos pela vocação humanista ("Essa peça é um pedido", diz ele) e pela urgência da época ("Essa peça é angústia com grito de espanto", diz ela).
Serão apenas 18 apresentações, numa realização do Sesc SP.

WOYZECK, O BRASILEIRO. De: Georg Büchner. Dramaturgia: Fernando Bonassi. Direção: Cibele Forjaz. Com: Matheus Nachtergaele, Marcélia Cartaxo, Servílio de Holanda, Nanego Lira, Everaldo Pontes, Rui Polanah, Nilton Bicudo e outros. Onde: Sesc Belenzinho - galpão (av. Álvaro Ramos, 915, tel. 0/ xx/ 11/6602-3700). Quando: estréia sábado, às 21h; sáb. e dom., às 21h. Quanto: R$ 15. Patrocinadores: BrasilTelecom, Rede Pathernon - Accor.


Texto Anterior: Programação de TV
Próximo Texto: Frase
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.