São Paulo, sábado, 05 de junho de 2004

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RODAPÉ

Guerra de nervos

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Com apenas três livros -"Cobertor de Estrelas", "Capuz" e o recém-lançado "Dos Nervos"-, o escritor paulista Ricardo Lísias criou um universo ficcional singular, com personagens tão absortas em problemas banais (e aparentemente racionais) que perdem a consciência da insensatez da realidade que as envolve.
Essa técnica literária, que consiste em associar situações absurdas a uma voz narrativa pacata, distanciada, tem antecedentes ilustres e não é difícil ver em Lísias um leitor atento (e um epígono promissor) de Poe, Kafka ou Beckett. O melhor exemplo é "Capuz", um livro notável, mas que infelizmente circulou apenas em edição não-comercial, publicada pela mesma editora que agora lança "Dos Nervos".
Naquele relato, dividido em 20 pequenos capítulos, um preso encapuzado conta de modo imperturbável seu dia-a-dia numa cela.
Não há menção a fatos biográficos ou às causas de sua prisão. Ele simplesmente fala sobre a dificuldade em se alimentar pelo orifício do capuz, narra diálogos com um companheiro de cárcere (que desconfiamos ser uma alucinação) e descreve o modo como calcula a passagem do tempo pelo crescimento das unhas e da barba -enfim, trivialidades que contrastam com sua situação patética.
O tom frio de Lísias tem como modelo possível "Na Colônia Penal", de Kafka, e faz de "Capuz" uma alegoria da servidão voluntária, em que a incomunicabilidade do narrador se desdobra numa consciência que atingiu aquele grau de alienação no qual a espoliação parece ser o estado natural das coisas: "Se me alimentam três vezes por dia, talvez sejam pessoas generosas", diz ele sobre seus carrascos.
Se em "Capuz" a escrita metódica era uma forma de alheamento e uma imagem invertida da desrazão, em "Dos Nervos" o insólito se produz como hipérbole e deformidade da própria razão.
O livro tem duas tramas paralelas. Na primeira, uma jovem professora universitária chega em casa e encontra um homem desconhecido sentado no sofá, desencadeando-se nela pensamentos obsessivos em que o medo inicial (seria ele um estuprador?) logo se transforma em delírio paranóico.
A partir dessa cena e de seus desdobramentos, Lísias cria para sua personagem um espaço mental em que o autodomínio (essa tentativa de blindagem emocional) se converte em pânico da dissolução subjetiva, em medo de ter medo.
Cada racionalização da protagonista representa mais um passo em direção ao desvario, e não demora para que ela misture seus estudos literários com suas fantasias -a ponto de ver no estranho visitante uma espécie de emissário divino do qual estaria grávida (o paralelo com a história da Virgem Maria é evidente e se inspira num dos sermões do padre Antonio Vieira citados no livro).

Xadrez
A outra trama descreve uma partida de xadrez entre dois jogadores, Ki e Ka, que remete à célebre disputa entre Kasparov e Karpov, na qual o primeiro representava a União Soviética da época da abertura e o segundo era o campeão do vetusto "establishment" comunista.
Transformado em ícone, o desafiante Ki é observado em todo o mundo por exilados do Leste Europeu que vêem nele um sinal dos novos tempos. O que parece interessar a Lísias, porém, não é o sentido político do confronto (hoje datado), mas justamente o salto que leva da racionalidade exigida pelo jogo de xadrez para as simbologias delirantes e as teorias conspiratórias que passam na cabeça dos espectadores e dos próprios enxadristas.
Diante de fios condutores tão diferentes, o leitor de "Dos Nervos" fica se perguntando como o autor vai atá-los ao final. Basta dizer que Lísias não está preocupado em fazer as inversões de enredo e os desfechos surpreendentes que se tornaram um cacoete em nossa literatura recente (mas que não passam de cabriolas narrativas sem maior significado).
O que suas personagens têm em comum é estarem encerradas numa espécie de tabuleiro mental em que disputam uma guerra de nervos contra os outros, contra si mesmas e, sobretudo, contra a insanidade sempre à espreita.


Dos Nervos
   
Autor: Ricardo Lísias
Editora: Hedra
Quanto: R$ 17 (48 págs.)



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