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RODAPÉ
Guerra de nervos
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Com apenas três livros -"Cobertor de Estrelas", "Capuz"
e o recém-lançado "Dos Nervos"-, o escritor paulista Ricardo Lísias criou um universo ficcional singular, com personagens
tão absortas em problemas banais
(e aparentemente racionais) que
perdem a consciência da insensatez da realidade que as envolve.
Essa técnica literária, que consiste em associar situações absurdas a uma voz narrativa pacata,
distanciada, tem antecedentes
ilustres e não é difícil ver em Lísias
um leitor atento (e um epígono
promissor) de Poe, Kafka ou Beckett. O melhor exemplo é "Capuz", um livro notável, mas que
infelizmente circulou apenas em
edição não-comercial, publicada
pela mesma editora que agora
lança "Dos Nervos".
Naquele relato, dividido em 20
pequenos capítulos, um preso encapuzado conta de modo imperturbável seu dia-a-dia numa cela.
Não há menção a fatos biográficos ou às causas de sua prisão. Ele
simplesmente fala sobre a dificuldade em se alimentar pelo orifício
do capuz, narra diálogos com um
companheiro de cárcere (que desconfiamos ser uma alucinação) e
descreve o modo como calcula a
passagem do tempo pelo crescimento das unhas e da barba
-enfim, trivialidades que contrastam com sua situação patética.
O tom frio de Lísias tem como
modelo possível "Na Colônia Penal", de Kafka, e faz de "Capuz"
uma alegoria da servidão voluntária, em que a incomunicabilidade
do narrador se desdobra numa
consciência que atingiu aquele
grau de alienação no qual a espoliação parece ser o estado natural
das coisas: "Se me alimentam três
vezes por dia, talvez sejam pessoas generosas", diz ele sobre seus
carrascos.
Se em "Capuz" a escrita metódica era uma forma de alheamento
e uma imagem invertida da desrazão, em "Dos Nervos" o insólito
se produz como hipérbole e deformidade da própria razão.
O livro tem duas tramas paralelas. Na primeira, uma jovem professora universitária chega em casa e encontra um homem desconhecido sentado no sofá, desencadeando-se nela pensamentos
obsessivos em que o medo inicial
(seria ele um estuprador?) logo se
transforma em delírio paranóico.
A partir dessa cena e de seus
desdobramentos, Lísias cria para
sua personagem um espaço mental em que o autodomínio (essa
tentativa de blindagem emocional) se converte em pânico da dissolução subjetiva, em medo de ter
medo.
Cada racionalização da protagonista representa mais um passo
em direção ao desvario, e não demora para que ela misture seus
estudos literários com suas fantasias -a ponto de ver no estranho
visitante uma espécie de emissário divino do qual estaria grávida
(o paralelo com a história da Virgem Maria é evidente e se inspira
num dos sermões do padre Antonio Vieira citados no livro).
Xadrez
A outra trama descreve uma
partida de xadrez entre dois jogadores, Ki e Ka, que remete à célebre disputa entre Kasparov e Karpov, na qual o primeiro representava a União Soviética da época da
abertura e o segundo era o campeão do vetusto "establishment"
comunista.
Transformado em ícone, o desafiante Ki é observado em todo o
mundo por exilados do Leste Europeu que vêem nele um sinal dos
novos tempos. O que parece interessar a Lísias, porém, não é o sentido político do confronto (hoje
datado), mas justamente o salto
que leva da racionalidade exigida
pelo jogo de xadrez para as simbologias delirantes e as teorias
conspiratórias que passam na cabeça dos espectadores e dos próprios enxadristas.
Diante de fios condutores tão
diferentes, o leitor de "Dos Nervos" fica se perguntando como o
autor vai atá-los ao final. Basta dizer que Lísias não está preocupado em fazer as inversões de enredo e os desfechos surpreendentes
que se tornaram um cacoete em
nossa literatura recente (mas que
não passam de cabriolas narrativas sem maior significado).
O que suas personagens têm em
comum é estarem encerradas numa espécie de tabuleiro mental
em que disputam uma guerra de
nervos contra os outros, contra si
mesmas e, sobretudo, contra a insanidade sempre à espreita.
Dos Nervos
Autor: Ricardo Lísias
Editora: Hedra
Quanto: R$ 17 (48 págs.)
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