São Paulo, sábado, 05 de junho de 2004

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"Amor Insensato" retrata homem respeitável que é subjugado por garota com traços ocidentais

Tanizaki faz crônica de complexo japonês

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Entre os clássicos do cinema que eu não consegui ver até o fim (deve haver algum site de cinéfilos com listas desse tipo), está "O Anjo Azul", com Marlene Dietrich. Bastou-me assistir a alguns minutos da história daquele patético professor Unrat (Emil Jannings), que cai nas mãos da fatal Marlene, para desligar o vídeo.
As situações descritas neste romance de Junichiro Tanizaki (1886-1965) tendem a me provocar o mesmo tipo de aflição: desde os primeiros capítulos, sabemos que o respeitável engenheiro Joji Kawai, de 28 anos, será reduzido a trapos pelo poder sexual da jovem Naomi. A primeira coisa que o atrai naquela balconista adolescente é a sonoridade desse nome, bastante ocidental a seus ouvidos. É com o título de "Naomi", aliás, que a primeira edição brasileira de "Amor Insensato" foi lançada no Brasil, na década de 80, pela editora Brasiliense.
Naomi ainda não completou 15 anos (some-se a imagem de Lolita àquela do Anjo Azul), vem de família humilde, mostra-se a princípio dócil, direta e inocente. Seduzido por seus traços ocidentais, Joji alimenta a fantasia de transformá-la numa mulher refinada. Será o caminho da ruína e da abjeção. Publicado em forma de folhetim nos anos de 1924 e 1925, "Amor Insensato" é considerado o primeiro grande romance de Tanizaki, que se consagraria mais tarde com "As Irmãs Morioka". No Brasil, sua obra vem sendo traduzida com relativa rapidez: "Voragem" e "A Chave" saíram pela Companhia das Letras; a editora Estação Liberdade lançou "Diário de um Velho Louco", seu último romance, de 1962, que resenhei há pouco tempo.
Quase 40 anos separam "Amor Insensato" do "Diário de um Velho Louco", mas o tema não muda: homem respeitável se deixa subjugar por mulher ocidentalizada, magnífica, obsedante. No primeiro, a narrativa é direta, por vezes estereotipada, mas prende a atenção. No "Diário" tudo é ao mesmo tempo mais sutil e extravagante. Nos dois casos, o encaminhamento dessas paixões lamentáveis, com direito a cenas de podolatria e humilhação em público, é bastante previsível.
Mas esses livros não se resumem ao retrato de uma servidão masculina na qual, visivelmente, o próprio autor do livro se compraz. Casos como o de Joji e Naomi, assim como o do sr. Utsugi e sua nora Satsuko, são a metáfora de outro tipo de submissão: a da cultura japonesa tradicional diante das influências do Ocidente. O complexo de inferioridade dos japoneses perante americanos e europeus é tratado com minúcia por Tanizaki, e merece ser lido por qualquer brasileiro, mais até pelas diferenças do que pelas semelhanças com nosso caso.
Em "Amor", são notáveis as páginas em que o protagonista confronta, num clube onde se dança o "fox-trot" e o "one-step", diferentes tipos de mulher: desde uma beldade do teatro clássico japonês até uma grotesca moça de traços camponeses, tentando se adaptar à modernidade ocidental.
Tanizaki é mestre nas descrições do corpo feminino, e o erotismo que emana de Naomi é bem mais convincente do que sua crueldade; quanto a Joji, parece excessivamente encarregado de representar as intenções do próprio autor, xingando Naomi de "meretriz imunda", por exemplo. É como se a lição moral deste romance (o Japão se corrompe ao abandonar a dignidade de suas tradições) tivesse de ser repetida até o clichê, para que o próprio Tanizaki se livrasse do sortilégio erótico das suas malévolas dançarinas de jazz. Ambigüidade que não é o menor motivo de fascínio deste livro.


Amor Insensato
    
Autor: Junichiro Tanizaki
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39,50 (271 págs.)



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