São Paulo, domingo, 05 de junho de 2005

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FERREIRA GULLAR

A fauna do Zeppelin

A partir das nove da noite, o Zeppelin fervia.
A maioria era gente de teatro, de cinema e de música, que se encontrava ali para conversar, discutir política e namorar. A ditadura aumentava progressivamente a pressão sobre a intelectualidade, em especial sobre a classe teatral, que, desde o primeiro momento, se mostrara rebelde.
Aquelas noites, regadas a chope e bom humor, ajudavam-nos a suportar a ignomínia de um regime que ninguém escolhera. Apesar de tudo, alegria era o que não faltava e, quando faltava, íamos para os ensaios do Salgueiro ou da Mangueira. Nas proximidades do Carnaval, a Banda de Ipanema fazia o povo do bairro dançar e cantar. E era ali, nas mesas do Zeppelin, que armávamos nossas estratégias de sobrevivência.
À medida que o bar foi se tornando conhecido como ponto de encontro de artistas, outro tipo de gente passou também a freqüentá-lo. Certa noite, apareceu lá um sujeito com um capacete de escafandrista e o pessoal, de sacanagem, fez que não reparou; o exibicionista ficou alguns minutos e depois foi embora. Aos poucos, a turma mais jovem passou a freqüentar o bar. Defendiam teses radicais, como atear fogo ao Teatro Municipal e coisas do gênero. Nosso grupo, ligado ao Partido Comunista, propunha, ao contrário, a união dos intelectuais e a luta organizada contra a censura e a repressão. O PCB foi por isso qualificado de "bundão" e, em seguida, apelidado de "partidão", ou seja, velho, acomodado. Quando algum de nós se aproximava da mesa deles, cochichavam entre si: "Gente antiga! Gente antiga!".
Isso não quer dizer que, do lado de cá, todos estivessem de acordo em tudo. Havia mesmo aqueles que, se não simpatizavam com a ditadura, tampouco estavam preocupados com ela; uns queriam apenas beber, outros, ganhar mulher, e havia ainda outro, como Roniquito, cujo prazer era esculhambar com o próximo sob qualquer pretexto. Certa vez, estava em nossa mesa um arquiteto que trabalhava nas obras do metrô, recém-iniciadas, e disse alguma coisa que desagradou a Roniquito.
- Cale a boca, que você como arquiteto, é uma negação. E você mesmo sabe disso, tanto que constrói suas obras debaixo da terra pra ninguém ver!
Por sorte, ganhei a simpatia desse boca-inferno ao citar alguns versos de Augusto dos Anjos. Pediu-me que dissesse o poema todo e eu disse. Ele então disparou a recitar versos do poeta paraibano e, desde então, tornamo-nos amigos. Fiquei aliviado, pois sabia que ele havia dito, na cara de Tom Jobim, que sua música era cópia da de Villa-Lobos e, certa noite, na casa de Lúcio Cardoso, começou a implicar com a tímida Clarice Lispector. O dono da casa, avisado da implicância, chamou Roniquito à parte e pediu-lhe que parasse com aquilo.
- Parar por quê? retrucou ele. Só porque ela pensa que é Virgínia Woolf?
Lúcio perdeu a paciência e o obrigou a se retirar. Roniquito saiu berrando agressões e, ao chegar à rua, postou-se debaixo da janela do Lúcio e passou a gritar:
- Lúcio Cardoso, Faulkner do Méier!
De fato, depois de algum tempo, já ninguém levava a sério os insultos de Roniquito, que, sóbrio, era um bom sujeito, inteligente e lido. Tornou-se uma figura folclórica de Ipanema e, por ironia do destino, morreu em razão de um atropelamento: um ônibus o pegou quando atravessava a avenida Ataulfo de Paiva, sóbrio.
Bem antes disso, teve um caso com uma conhecida minha que acabara de se separar do marido. Insegura, com dois filhos para criar, caiu na conversa de Roniquito, mas os porres freqüentes e as agressões verbais do namorado a levaram a pôr fim ao namoro. Roniquito, inconformado, telefonava para ela dia e noite.
Vendo que nada conseguia por esse meio, foi até a repartição onde ela trabalhava e insistiu em conversar. Deram algumas voltas em torno do quarteirão, ele argumentando e ela dizendo não. Ao ver que não conseguiria convencê-la a voltar com ele, disse já no limite do descontrole:
- Quer dizer que está tudo acabado mesmo?
- Sinto muito, Roni, mas...
- Pois fique sabendo -berrou ele em plena rua- que você é uma bosta e seus filhos são feios pra cacete!
Essa me contou uma amiga íntima da vítima.
Mas houve uma que eu mesmo testemunhei. Aconteceu na avenida Rio Branco, esquina com a Sete de Setembro, onde, naquele tempo, havia uma banca de jornais de um botafoguense. Alguns metros adiante, ficava a redação do "Jornal do Brasil", onde eu trabalhava. A tal banca de jornais era conhecida pelas discussões que ali se armavam, às segundas-feiras, a propósito das partidas de futebol do domingo. Mas, com o tempo, passou-se a discutir tudo, dos problemas políticos aos casos policiais. Naquela tarde, a discussão era sobre o Judiciário.
Roniquito, que se intrometera na discussão, garantia que o Judiciário era todo ele constituído de juízes venais.
- Todos não, discordou um senhor de óculos com cara de advogado. Há juízes honestos.
- Honestos?! -fingiu escandalizar-se Roniquito. Pois eu acabo de ser assaltado na Barra da Tijuca por quatro juízes togados!
Saudoso Roniquito...

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