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FERREIRA GULLAR
A fauna do Zeppelin
A partir das nove da noite,
o Zeppelin fervia.
A maioria era gente de teatro,
de cinema e de música, que se encontrava ali para conversar, discutir política e namorar. A ditadura aumentava progressivamente a pressão sobre a intelectualidade, em especial sobre a
classe teatral, que, desde o primeiro momento, se mostrara rebelde.
Aquelas noites, regadas a chope
e bom humor, ajudavam-nos a
suportar a ignomínia de um regime que ninguém escolhera. Apesar de tudo, alegria era o que não
faltava e, quando faltava, íamos
para os ensaios do Salgueiro ou
da Mangueira. Nas proximidades
do Carnaval, a Banda de Ipanema fazia o povo do bairro dançar
e cantar. E era ali, nas mesas do
Zeppelin, que armávamos nossas
estratégias de sobrevivência.
À medida que o bar foi se tornando conhecido como ponto de
encontro de artistas, outro tipo de
gente passou também a freqüentá-lo. Certa noite, apareceu lá um
sujeito com um capacete de escafandrista e o pessoal, de sacanagem, fez que não reparou; o exibicionista ficou alguns minutos e
depois foi embora. Aos poucos, a
turma mais jovem passou a freqüentar o bar. Defendiam teses
radicais, como atear fogo ao Teatro Municipal e coisas do gênero.
Nosso grupo, ligado ao Partido
Comunista, propunha, ao contrário, a união dos intelectuais e a
luta organizada contra a censura
e a repressão. O PCB foi por isso
qualificado de "bundão" e, em seguida, apelidado de "partidão",
ou seja, velho, acomodado. Quando algum de nós se aproximava
da mesa deles, cochichavam entre
si: "Gente antiga! Gente antiga!".
Isso não quer dizer que, do lado
de cá, todos estivessem de acordo
em tudo. Havia mesmo aqueles
que, se não simpatizavam com a
ditadura, tampouco estavam
preocupados com ela; uns queriam apenas beber, outros, ganhar mulher, e havia ainda outro, como Roniquito, cujo prazer
era esculhambar com o próximo
sob qualquer pretexto. Certa vez,
estava em nossa mesa um arquiteto que trabalhava nas obras do
metrô, recém-iniciadas, e disse alguma coisa que desagradou a Roniquito.
- Cale a boca, que você como
arquiteto, é uma negação. E você
mesmo sabe disso, tanto que
constrói suas obras debaixo da
terra pra ninguém ver!
Por sorte, ganhei a simpatia
desse boca-inferno ao citar alguns
versos de Augusto dos Anjos. Pediu-me que dissesse o poema todo
e eu disse. Ele então disparou a recitar versos do poeta paraibano e,
desde então, tornamo-nos amigos. Fiquei aliviado, pois sabia
que ele havia dito, na cara de
Tom Jobim, que sua música era
cópia da de Villa-Lobos e, certa
noite, na casa de Lúcio Cardoso,
começou a implicar com a tímida
Clarice Lispector. O dono da casa,
avisado da implicância, chamou
Roniquito à parte e pediu-lhe que
parasse com aquilo.
- Parar por quê? retrucou ele.
Só porque ela pensa que é Virgínia Woolf?
Lúcio perdeu a paciência e o
obrigou a se retirar. Roniquito
saiu berrando agressões e, ao chegar à rua, postou-se debaixo da
janela do Lúcio e passou a gritar:
- Lúcio Cardoso, Faulkner do
Méier!
De fato, depois de algum tempo,
já ninguém levava a sério os insultos de Roniquito, que, sóbrio,
era um bom sujeito, inteligente e
lido. Tornou-se uma figura folclórica de Ipanema e, por ironia do
destino, morreu em razão de um
atropelamento: um ônibus o pegou quando atravessava a avenida Ataulfo de Paiva, sóbrio.
Bem antes disso, teve um caso
com uma conhecida minha que
acabara de se separar do marido.
Insegura, com dois filhos para
criar, caiu na conversa de Roniquito, mas os porres freqüentes e
as agressões verbais do namorado
a levaram a pôr fim ao namoro.
Roniquito, inconformado, telefonava para ela dia e noite.
Vendo que nada conseguia por
esse meio, foi até a repartição onde ela trabalhava e insistiu em
conversar. Deram algumas voltas
em torno do quarteirão, ele argumentando e ela dizendo não. Ao
ver que não conseguiria convencê-la a voltar com ele, disse já no
limite do descontrole:
- Quer dizer que está tudo
acabado mesmo?
- Sinto muito, Roni, mas...
- Pois fique sabendo -berrou
ele em plena rua- que você é
uma bosta e seus filhos são feios
pra cacete!
Essa me contou uma amiga íntima da vítima.
Mas houve uma que eu mesmo
testemunhei. Aconteceu na avenida Rio Branco, esquina com a
Sete de Setembro, onde, naquele
tempo, havia uma banca de jornais de um botafoguense. Alguns
metros adiante, ficava a redação
do "Jornal do Brasil", onde eu trabalhava. A tal banca de jornais
era conhecida pelas discussões
que ali se armavam, às segundas-feiras, a propósito das partidas de
futebol do domingo. Mas, com o
tempo, passou-se a discutir tudo,
dos problemas políticos aos casos
policiais. Naquela tarde, a discussão era sobre o Judiciário.
Roniquito, que se intrometera
na discussão, garantia que o Judiciário era todo ele constituído de
juízes venais.
- Todos não, discordou um senhor de óculos com cara de advogado. Há juízes honestos.
- Honestos?! -fingiu escandalizar-se Roniquito. Pois eu acabo de ser assaltado na Barra da
Tijuca por quatro juízes togados!
Saudoso Roniquito...
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