São Paulo, Sábado, 05 de Junho de 1999
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LIVRO - LANÇAMENTO
"Vitória" mostra o verso do conto de fada

MARIANE MORISAWA
da Redação

Era uma vez a princesa Vitória, que subiu ao trono muito cedo, depois de ser a terceira na linha de sucessão, casou com um rapaz belo e sábio, a quem amava muito, teve muitos filhos, reinou, por 64 anos, no período de maior poder e riqueza de seu país, a Inglaterra, e deu nome a uma era, marcada por sua imagem de austeridade.
Por trás do conto de fadas, no entanto, existia uma criança isolada e infeliz, que perdera o pai ainda bebê, uma jovem insegura quanto a sua aparência e capacidade de reinar, uma mulher vidrada por seu marido, o príncipe Albert, descontente com o ofício de mãe, egoísta, aberta a futilidades.
Foi a diferença entre a imagem austera da Vitória das fotografias e a mulher que revelava seus sentimentos em cartas e diários que atraiu a escritora Anka Muhlstein, autora do livro "Vitória", que foi lançado há 20 anos na França e só agora chega ao Brasil.
"Ali estava uma mulher que era incomumente franca em seus gostos e desgostos -eu fiquei particularmente atônita pelo fato de ela admitir as dificuldades em relação a suas crianças-, uma mulher que não tentava minimizar a importância da atração física quando se tratava de amor e que parecia completamente livre de preconceitos sociais e raciais", disse Anka Muhlstein em entrevista à Folha.
Na biografia, a escritora apresenta uma imagem nova para a rainha dos livros escolares. Em vez de se ater aos maçantes fatos históricos, Muhlstein abriu as cartas e os diários francos de Vitória. Ao devassá-los, ela descartou a imagem que se faz dos soberanos, que sempre parecem invencíveis, inumanos.
Muhlstein mostra uma Vitória que não se acanha em demonstrar seus mais íntimos sentimentos em cartas a seu tio Leopold, amigo desde a infância, com opiniões sempre preciosas à menina sem pai e à jovem rainha, e até a seu conselheiro, o lorde Melbourne. "Noite desconcertante e deliciosa", diz a rainha em carta a Melbourne um dia após suas núpcias.
Antes, relatara a seu tio as qualidades de Albert, seu marido. "Oh! meu caro tio, como estou feliz! Realmente, adoro Albert. (...) Não suporto ser afastada dele, pois as horas que passamos juntos são tão felizes, tão encantadoras."
Esse escancaramento de sensações era algo novo entre os soberanos. "A novidade era que ela expressava os sentimentos e que a fronteira entre a rainha e a mulher diminuíram. A rainha burguesa, a rainha como mulher, mãe e avó era algo novo", diz Muhlstein.

Filhos
Logo após o casamento, vieram os filhos. Nove. Mas Vitória, ao contrário de Albert, não se encantava com as crianças, nem mesmo com os pequenos, revelando extrema crueldade. "Um bebê feio é um objeto completamente repugnante (...) e o mais bonito deles é pavoroso (...) pois seus pequenos membros lhe dão um corpo desproporcionado e ele é animado daqueles horríveis movimentos de rã."
Sobre uma das crianças, seria ainda mais cruel: "Leopold é extremamente feio, comporta-se sempre mal e é muito desagradável, creio mesmo que está mais feio do que quando era pequeno".
"Muitas razões podem ajudar a compreender sua frieza em relação às crianças", conta a escritora. "Elas eram um impedimento à sua intimidade com Albert. E o fato de que as crianças não a divertiam ou interessavam teve um papel. Ela era muito ocupada, muito impaciente para ser uma boa mãe."
Aos poucos, o amado Albert, no início afastado dos negócios públicos, vivendo apenas como o marido de Vitória, passa, com sua inteligência e percepção das coisas, a ter papel fundamental no reinado. Como mostra o livro, ela até deixa alguns assuntos sob responsabilidade do príncipe.
A morte de Albert, em 1861, aos 42 anos, seria avassaladora para a rainha: "Oh! é muito terrível, muito pavoroso! E uma náusea, um frio glacial próximo do mais louco desespero que me invade". Transtornada, ela se afasta do trono, passando boa parte de seu tempo na Escócia.
Ainda cruel e egoísta, não suporta que seus filhos se mostrem felizes, mesmo que estejam se casando, nem que ousem parecer mais infelizes do que ela. Escreve ela à filha, contente por ir ao casamento do irmão: "Querida filha, teu êxtase diante de tudo isto me parece muito incompreensível! (...) Um dia que esperamos com tanta alegria durante longos anos e que agora é para mim pior do que um enterro!".
Mais tarde, causaria escândalo ao se tornar amiga do rude cavalariço John Brown -história relatada no filme "Sua Majestade, Mrs. Brown". Suspeitavam que fossem amantes.
Anka Muhlstein acredita que isso não tenha acontecido: "Ela chocou suas crianças e seus empregados porque ria com Brown e se submetia a suas decisões sobre seus passeios e diversões. Havia algo bizarro na relação no sentido de que eles não eram amantes -estou convencida de que não- e ainda assim era um relacionamento físico. Ela gostava precisamente da força e rudeza de Brown".
Apesar de mostrar a força feminina ao reinar durante tanto tempo, a contraditória Vitória nunca defendeu os direitos da mulher. Ainda, mesmo tendo empregado um hindu na corte e defendido os pobres, a rainha pouco fez para melhorar a condição do povo. "Foi a duração de seu reinado que deu a Vitória a importância, não suas qualidades. Ela acabou por simbolizar a resistência e o poder ingleses", completa Muhlstein.
A avó da Europa -entre seus descendentes estavam a imperatriz da Rússia, o imperador da Alemanha e as rainhas da Grécia, da Noruega e da Romênia-, ao morrer, em 1901, deixava um reino sólido e potente. E um acervo precioso sobre as fraquezas e virtudes da rainha burguesa, na forma de cartas e diários, reveladas e analisadas na biografia de Muhlstein.

Livro: Vitória
Autora: Anka Muhlstein Lançamento: Companhia das Letras Quanto: R$ 25 (164 págs.)



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