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RESENHA DA SEMANA
O sorriso de Sade
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Tudo o que Sade quer é dizer
a verdade. Contra toda convenção e contrato social. A verdade
nua e crua, que só se vê quando
se encara o vazio do nada.
"Só sacrificando tudo à volúpia, o infeliz indivíduo denominado homem e jogado a
contragosto neste triste universo conseguirá semear algumas
rosas sobre os espinhos da vida", escreve o marquês no seu
"A Filosofia na Alcova", que sai
agora em nova edição, com tradução, posfácio e notas de Augusto Contador Borges.
Se a vida não faz o menor sentido, ou melhor, se é impossível
ao homem entender o sentido
da vida, só lhe resta se entregar
aos desígnios da natureza, aos
seus instintos mais puros e animais, ao desejo e ao prazer.
Mass se o princípio sadiano é
do desejo e do prazer, como é
possível que os homens tenham acabado preferindo as
convenções e a religião a essa
filosofia libertina, aliás tão perseguida, punida e censurada
(em 1957, o editor Jean-Jacques
Pauvert ainda era condenado,
em Paris, por publicar os textos
de Sade) pelo perigo de sua divulgação?
É que a verdade que essa obra
se propõe a revelar é tão devastadora de todos os artifícios
(Deus, o amor, as virtudes) que
os homens inventam para sobreviver diante do vazio absoluto, que sua leitura ameaça semear o próprio aniquilamento
do homem. A radicalidade de
seu niilismo é tanta que a própria concepção de mundo proposta por essa filosofia trágica
já é em si uma impossibilidade.
Espelha a impossibilidade do
mundo escondida sob a superfície das convenções sociais,
morais e religiosas.
Em "A Filosofia na Alcova",
um texto "light" se comparado
à obra-prima que é "Os Cento e
Vinte Dias de Sodoma", um
grupo de libertinos se reúne
para iniciar -na teoria e na
prática- uma virgem nos
princípios do desejo, do prazer
e da crueldade.
Fascinado pelo teatro (encenou peças com os detentos do
hospício de Charenton, onde
acabou internado), Sade expõe
sua filosofia em diálogos. Depois de ouvir o libertino Dolmancé explicar para sua pupila
Eugénie a legitimidade do assassinato, a senhora de Saint-Ange, auxiliar do mestre na
educação da menina, se espanta: "Sabeis de uma coisa, Dolmancé, que por meio deste sistema acabareis provando que a
extinção total da raça humana
seria um benefício para a natureza?" E ao libertino só cabe
responder: "E alguém duvida,
senhora?".
Aristocrata devasso na Revolução Francesa, passando boa
parte da vida encarcerado, Sade se proclama herdeiro da razão enciclopedista, mas a radicaliza a ponto de aniquilar
qualquer veleidade de conhecimento ou ilustração (o único
conhecimento possível ao homem é o do seu próprio desejo
individual e despótico, em detrimento do outro, que é reduzido a objeto do prazer).
Sade desafia a razão a dar um
passo além e encarar a verdade
que tem diante de si: "Se todos
os indivíduos fossem eternos,
não se tornaria impossível à
natureza criar novos seres? Se a
eternidade dos seres é impossível à natureza, sua destruição
torna-se portanto uma de suas
leis (...) e o homem que destrói
seu semelhante é para a natureza aquilo que é para ele a peste
ou a fome, igualmente enviadas
pela sua mão".
Para quem busca o sentido da
vida, essa nova religião do prazer e do desejo absolutos grita
uma única resposta circular e
desoladora: "Nós estamos aqui
porque seria impossível que
aqui não estivéssemos". Só resta o desejo. E o sujeito é dissolvido pelo desejo.
Numa entrevista de 68, Michel Foucault comparava a
obra de Sade ao paradoxo lógico do "sorriso do gato sem o
gato" em "Alice no País das
Maravilhas", de Lewis Carroll:
"Trata-se de um quebra-cabeças de todas as possibilidades
sexuais, sem que as próprias
pessoas sejam outra coisa além
de elementos nessas combinações e cálculos. (...) O homem
não participa disso. O que se
expõe e se exprime por si só é a
linguagem e a sexualidade. Linguagem sem ninguém falando;sexualidade anônima sem
um sujeito que dela tire prazer." Uma "obra sem autor".
Contador Borges explica o
mesmo paradoxo de outra forma em seu posfácio: "Mas se a
"mais-revolução" proposta por
Sade é impraticável (daí sua
utopia), sua palavra permanece
como um exercício de lucidez
sombria que não se pode descartar. Se esta literatura está
condenada ao impossível por
se divorciar do real, ela se vinga
no espaço de sua realidade absurda criando um mundo às
avessas, como um espelho de
imagens retorcidas em que, no
entanto, o homem contrafeito
parece belo, o gozo triunfa e a
felicidade é possível".
A obra de Sade recria o próprio espaço da literatura: esse
lugar onde se desenha a verdade mais insustentável, o contrário da realidade possível.
Um mundo da imaginação, onde o sorriso do gato pode existir sem o gato.
Avaliação:
Livro: A Filosofia na Alcova
Autor: Marquês de Sade
Tradução: Augusto Contador Borges
Lançamento: Iluminuras
Quanto: R$ 23 (255 págs.)
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