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CONTARDO CALLIGARIS
Gorilas entre nós
Num pequeno hall, seis jovens estão dispostos num
círculo. Três estão de branco, e
três, de preto, intercalados, ou seja, há um de branco, um de preto
etc. Constituem dois times, cada
um dos quais dispõe de sua bola
própria. Os times movimentam
essa bola entre seus integrantes
com passes rápidos. Ao mesmo
tempo, o círculo inteiro dos seis
jovens gira em sentido horário. Os
times não lutam entre si, mas, por
causa do movimento, do espaço
restrito e da simultaneidade dos
passes dentro dos dois times, o jogo é bem animado.
De repente, chega um gorila, na
verdade, um sujeito disfarçado de
gorila. Ele atravessa o círculo dos
jogadores e pára no meio. Os jovens continuam jogando como se
não percebessem nada. O gorila
olha para você, bate furiosamente
no peito, como se espera de um
gorila, e sai de cena. O bicho ficou
no hall durante nove segundos.
Numa experiência recente do
Laboratório de Cognição Visual
de Harvard (www.wjh.harvard.edu), essa cena foi mostrada em
vídeo a pessoas que, antes de assistirem à fita, receberam a tarefa
de contar o número de passes efetuados pelo time branco. Foi suficiente para que a metade dos participantes não notasse a passagem do gorila.
No site do laboratório, é possível
ver um trecho do vídeo. Quem assistir achará incrível que alguém
não note o gorila. Mas nós não somos mais sujeitos "inocentes",
pois sabemos do gorila. Por isso
ele catalisa nosso olhar.
A experiência (publicada em
"Perception", vol. 28) é uma contribuição ao estudo da dita "cegueira por desatenção" diante de
objetos visuais complexos e dinâmicos (seis jogadores, todos se
movimentando etc). Aprendemos
que a capacidade de perceber um
objeto inesperado depende de sua
similaridade com os objetos sobre
os quais está concentrada a atenção: no caso, a similaridade é mínima, pois o gorila é escuro e os
circunstantes devem contar os
passes do time branco. Outra variável é a complexidade da tarefa
imposta aos presentes: contar os
passes pede bastante concentração.
Seja como for, a denominação
"cegueira por desatenção" é equivocada. De fato, a cegueira é produzida por um excesso de atenção. Os sujeitos não vêem o gorila
porque têm algo para fazer que é,
para eles, mais importante do que
observar o que acontece: devem e
querem contar os passes.
Os psicoterapeutas e os psicanalistas simpatizarão com a experiência. Freud recomendava que
os pacientes fossem escutados
com uma atenção "flutuante", ou
seja, aberta, não-focalizada
-justamente para não perder a
entrada dos gorilas. Ele também
aconselhava que os psicanalistas
não se entregassem ao furor de
curar. Qualquer terapia se propõe
a melhorar a vida dos pacientes,
mas o anseio de sarar pode funcionar como uma atenção excessiva consagrada ao número dos
passes do time branco.
Bem além do campo da psicoterapia, a experiência do laboratório de Harvard sugere uma revisão do triunfalismo das teorias,
digamos assim, "ativas" do conhecimento, pelas quais a crítica
e a vontade de mudar as coisas seriam os caminhos privilegiados
para entender o mundo -mote:
conheçam transformando.
Ora, segundo a experiência do
gorila, uma percepção plena exige
um olhar não-orientado e não-atarefado, ou seja, ela precisa de
uma certa aceitação do mundo.
Em outras palavras, é importante
querer construir pontes, mas, se
olharmos para o vale sempre e só
com essa intenção, perderemos de
vista o rio, as montanhas e até as
pessoas que queremos ajudar a
atravessar. Quando nos deparamos com uma análise de situações sociais, políticas ou mesmo
familiares decididamente orientada por intenções reformadoras,
sugiro que paremos um instante
para perguntar: "Alguém viu um
gorila por aqui?".
Durante as férias escolares, canso de ouvir pais receosos de que os
filhos adolescentes se encontrem
sem nada para fazer, desconcentrados. Gostariam de que seus rebentos fossem sempre atarefados,
sem tempo para vagabundear.
Entendo por quê: uma das figuras
ideais do sucesso é o sujeito ocupadíssimo e focadíssimo. Não por
acaso o sofrimento psíquico é hoje
frequentemente resumido segundo duas vertentes principais: a depressão e a dificuldade de concentrar-se, o dito Attention Deficit
Disorder (ADD). Essas categorias
são exatamente o inverso da figura que mencionei acima: o deprimido não se ocupa o suficiente, e
o sujeito com déficit de atenção
não focaliza. Nos termos da experiência de Harvard, o deprimido
acharia que não vale a pena contar esses passes, e o sujeito com
déficit de atenção não se concentraria o suficiente para contar.
Com isso eles certamente enxergariam o gorila.
O sujeito ideal, no fim do vídeo,
mostrará a conta certa, orgulhoso
e convencido de responder às expectativas que foram depositadas
nele.
Infelizmente, a metade desses
sujeitos prestativos, por mostrarem serviço, não verá o gorila.
Entretanto talvez ninguém esteja a fim mesmo de reparar nos
eventuais gorilas que circulam no
meio da gente.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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