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BERNARDO CARVALHO
The World é uma prisão
"The World", do chinês
Jia Zhang-ke, é um filme
da globalização. E, no entanto, só
fala da imobilidade, da escravização, da impossibilidade e da inutilidade do movimento, enquanto
o discurso oficial de banqueiros,
investidores e tecnocratas hoje insiste em exaltar a velocidade (café
da manhã em Londres, almoço de
negócios em Nova York, jantar
com empresários em Tóquio) e
em tentar nos convencer das vantagens dos fluxos (sobretudo de
capital, e numa certa direção)
globais. Em "The World", o único
movimento que resta de fato é o
comércio, no pior sentido da palavra.
Exibido na seleção oficial do
Festival de Veneza do ano passado, o filme estreou em Paris há
um mês, em perfeita sincronia
com as revelações divulgadas pela
imprensa sobre a onda recente de
imigração chinesa na França.
Uma situação que as autoridades
teriam preferido continuar ignorando, pois envolvem casos constrangedores de escravização de
imigrantes em pleno território
francês (no coração da nova Europa tecnocrática e não em algum
país periférico da África, da Ásia
ou da América Latina) por seus
compatriotas.
Não é mero acaso que o marido
de uma das personagens do filme,
todo rodado num parque temático na periferia de Pequim, tenha
pago os olhos da cara para comprar um visto francês e desaparecer, não sem antes mandar para a
mulher um retrato tirado na saída da estação de metrô do bairro
parisiense de Belleville. Num
mundo reduzido ao comércio, a
mobilidade custa caro.
Belleville é o subtítulo de um
dos capítulos ou das partes em
que se divide o filme de Zhang-ke.
Assim como "Noite de Ulaanbaatar", entre outros, são subtítulos
que se referem ao que dizem, pensam ou sentem os personagens,
mas nunca ao local onde de fato
estão. Todos querem ir para outro
lugar, mas permanecem para
sempre nesse limbo que é a estranha periferia de Pequim retratada pelo filme.
"The World" é um filme alegórico. O título se refere a um parque temático que reproduz os
principais monumentos da humanidade (a torre Eiffel, o Arco
do Triunfo, as pirâmides do Egito,
a Acrópole de Atenas, o skyline de
Nova York, a Torre de Pisa etc.)
numa escala dois terços menor,
nos arredores da capital chinesa.
O slogan sobre o qual se sustenta
o empreendimento, descontando
a perversidade do subtexto, visa
produzir uma sensação de alívio e
atrair a população de um país onde nem todos podem obter um
passaporte: "Dê a volta ao mundo
sem sair de Pequim"; "Você me
dá um dia, eu te dou o mundo".
The World é um museu de fantasia a céu aberto, onde se conserva,
como paródia involuntária, uma
idéia de mundo que já não pode
existir, o mundo como um parque
de diversões, como um álbum de
figurinhas.
São os personagens do filme de
Zhang-ke que dão o contraponto
do real. São empregados do parque, em geral gente que veio das
Províncias, do interior, o lúmpen
da globalização, para trabalhar
como seguranças ou dançarinas e
figurantes a caráter (egípcias, japonesas, africanas etc.). Gente
condenada à imobilidade de uma
farsa, sonhando com um passaporte, enquanto dança fantasiada de estrangeira em shows à moda da Broadway e caminha todos
os dias entre a réplica do Big Ben
e a do Taj Mahal, entre uma miragem do Japão e outra dos Estados Unidos.
""The World" mostra que já não
há dia nem noite, nem interior
nem exterior -tudo foi reduzido
a uma unidade. (...) Em "The
World", o que me interessava era
fazer sentir o confinamento do lugar, o aprisionamento", disse o
diretor em entrevista à revista
"Cahiers du Cinéma".
É o mundo da globalização, onde, sob a ilusão da mobilidade absoluta, é preciso comprar o seu
passe e a sua alforria para conseguir chegar a qualquer lugar. O
movimento só é possível pelo comércio: pelo dinheiro, pela prostituição e pelo tráfico. Quando um
grupo de russas que não fala uma
palavra de chinês chega para trabalhar no parque, o homem que
as contratou imediatamente recolhe seus passaportes, por "medida de segurança", "para que não
corram o risco de perdê-los". Uma
das russas dá a entender que prefere guardar o passaporte consigo
e em poucos segundos se dá conta
da sua ingenuidade. O mundo é
uma armadilha. Trabalhar é escravizar-se. The World é uma prisão em que o movimento é sempre uma simulação inútil e patética.
Os indícios dessa imobilidade
são inúmeros. Um homem manda um recado no celular para a
mulher que o deixou: "Vamos ver
até onde você vai". Quando vêem
passar um avião, um personagem
pergunta a outro: "Quem serão as
pessoas dentro daquele avião?". E
o outro responde: "Não sei. Não
conheço ninguém que tenha pegado um avião".
No parque, há uma sucata de
avião, um simulador para os que
não podem voar. Para guardar
em casa uma lembrança da viagem, os visitantes deixam-se registrar em vídeo, sentados num
"tapete voador" diante de um
fundo azul onde depois se inserem as imagens em movimento
da sua volta ao mundo.
Já que não podem sair dali, os
empregados se servem de binóculos para observar de longe as miniaturas dos falsos monumentos.
A distância lhes dá pelo menos a
ilusão de uma perspectiva mais
real, mais humana e menos claustrofóbica. Só a distância lhes permite respirar nesse mundo que,
de tão pequeno, já não permite
nenhum movimento. A não ser o
de se vender e de se hipotecar.
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