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RODAPÉ LITERÁRIO
"Satolep" e o omsilanoiger
A obra do gaúcho Vitor
Ramil encontrou seu caminho para escavar as incertezas da identidade
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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
MESMO OS que desconfiam
dos usos a que uma mitologia regionalista pode se
prestar (no pior dos extremos, à demagogia xenofóbica e ao separatismo) concedem um fundo de verdade aos clichês que associam mineiros, montanhas e introspecção ou
cariocas, mar e festa, por exemplo.
Romance recém-lançado do gaúcho Vitor Ramil, também cancionista (irmão de Kleiton e Kledir, parceiro do uruguaio Jorge Drexler) e
autor convidado da Flip, "Satolep"
mostra que, cinzas do Norte ou ruínas ao Sul, o buraco do bom regionalismo é sempre, com o perdão do
trocadilho infame, mais embaixo,
longe do mero recorte naturalista ou
do culto reverencial das tradições.
Ramil formulou uma "estética do
frio", tendo ao centro a melancolia
das milongas, voz ideal tanto para o
vento que varre a amplidão fria das
planícies fronteiriças como para sua
gente. Mas os gestos de ironia não
lhe são estranhos, a começar por ter
incorporado em suas apresentações
como músico um personagem (o
Barão de Satolep, pálido, corcunda e
trajando uma capa) que esvazia a
idéia de um orgulho local programático e evita que a atenção para com o
específico vire o apreço pelo exótico.
Se o Sul tem história própria, tampouco é outro planeta.
Em "Satolep", o romance, o distanciamento obtido é de outra ordem, no tempo, conduzido pelo vôo
às avessas da memória que espelha o
palíndromo do título. A busca da
identidade gaúcha se confunde com
a do narrador do livro, Selbor (Lopes? Borges?), um homem para
quem, aos 30 anos, a volta às origens
se traduz em percurso geográfico,
regresso a Pelotas, onde, aliás, o próprio Ramil nasceu, em 1962.
Não é indiferente que o protagonista seja um fotógrafo em crise, artista para quem a unidade possível é
sempre da ordem do imaginado, remetendo a uma confusão temporal
que projeta fragmentos da infância,
desejos e remorsos na materialidade
de um mundo sobrevivente entre
outros tantos possíveis, cujo único
vestígio são as fotografias.
Ramil combinou engenhosamente uma trama borgiana, com direito
a duplos, curtos-circuitos temporais, coincidências labirínticas, jogos entre literatura e história. Desta multiplicação de artifícios, à beira
do excesso, o mais funcional para a
trama é a intercalação do texto com
fotos antigas da cidade, produzidas
na década de 1920 como parte de um
esforço de memória pública.
No romance, elas aparecem tanto
como registros das tentativas do
narrador de assenhorar-se do passado quanto como prefiguração profética de seu destino. Um rapaz triste,
de partida quando ele chega, deixa
cair de um trem um manuscrito, que
descreve antes e em minúcia as fotos
que Selbor virá a tirar. Neste insólito
diálogo entre a voz do narrador, a
voz das legendas e o contorno das
imagens, "Satolep" encontrou seu
caminho para escavar as incertezas
da identidade.
SATOLEP
Autor: Vitor Ramil
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (288 págs.)
Avaliação: bom
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