São Paulo, sábado, 05 de julho de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

"Satolep" e o omsilanoiger


A obra do gaúcho Vitor Ramil encontrou seu caminho para escavar as incertezas da identidade

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

MESMO OS que desconfiam dos usos a que uma mitologia regionalista pode se prestar (no pior dos extremos, à demagogia xenofóbica e ao separatismo) concedem um fundo de verdade aos clichês que associam mineiros, montanhas e introspecção ou cariocas, mar e festa, por exemplo.
Romance recém-lançado do gaúcho Vitor Ramil, também cancionista (irmão de Kleiton e Kledir, parceiro do uruguaio Jorge Drexler) e autor convidado da Flip, "Satolep" mostra que, cinzas do Norte ou ruínas ao Sul, o buraco do bom regionalismo é sempre, com o perdão do trocadilho infame, mais embaixo, longe do mero recorte naturalista ou do culto reverencial das tradições.
Ramil formulou uma "estética do frio", tendo ao centro a melancolia das milongas, voz ideal tanto para o vento que varre a amplidão fria das planícies fronteiriças como para sua gente. Mas os gestos de ironia não lhe são estranhos, a começar por ter incorporado em suas apresentações como músico um personagem (o Barão de Satolep, pálido, corcunda e trajando uma capa) que esvazia a idéia de um orgulho local programático e evita que a atenção para com o específico vire o apreço pelo exótico. Se o Sul tem história própria, tampouco é outro planeta.
Em "Satolep", o romance, o distanciamento obtido é de outra ordem, no tempo, conduzido pelo vôo às avessas da memória que espelha o palíndromo do título. A busca da identidade gaúcha se confunde com a do narrador do livro, Selbor (Lopes? Borges?), um homem para quem, aos 30 anos, a volta às origens se traduz em percurso geográfico, regresso a Pelotas, onde, aliás, o próprio Ramil nasceu, em 1962.
Não é indiferente que o protagonista seja um fotógrafo em crise, artista para quem a unidade possível é sempre da ordem do imaginado, remetendo a uma confusão temporal que projeta fragmentos da infância, desejos e remorsos na materialidade de um mundo sobrevivente entre outros tantos possíveis, cujo único vestígio são as fotografias.
Ramil combinou engenhosamente uma trama borgiana, com direito a duplos, curtos-circuitos temporais, coincidências labirínticas, jogos entre literatura e história. Desta multiplicação de artifícios, à beira do excesso, o mais funcional para a trama é a intercalação do texto com fotos antigas da cidade, produzidas na década de 1920 como parte de um esforço de memória pública.
No romance, elas aparecem tanto como registros das tentativas do narrador de assenhorar-se do passado quanto como prefiguração profética de seu destino. Um rapaz triste, de partida quando ele chega, deixa cair de um trem um manuscrito, que descreve antes e em minúcia as fotos que Selbor virá a tirar. Neste insólito diálogo entre a voz do narrador, a voz das legendas e o contorno das imagens, "Satolep" encontrou seu caminho para escavar as incertezas da identidade.


SATOLEP
Autor:
Vitor Ramil
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (288 págs.)
Avaliação: bom


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