São Paulo, Segunda-feira, 05 de Julho de 1999
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Livro abre os olhos de Kubrick



"Eyes Wide Open", escrito por Frederic Raphael, roteirista do filme "De Olhos Bem Fechados", mostra os pensamentos do diretor e suas divergências com o cineasta durante as filmagens da superaguardada produção, que estréia dia 16 nos EUA e em setembro no Brasil
Associated Press
O diretor Stanley Kubrick, autor de "De Olhos Bem Fechados", que estréia neste mês nos EUA


AMIR LABAKI
da Equipe de Articulistas


Obcecado até a morte com sua privacidade, Stanley Kubrick (1928-1999) jamais teria convidado Frederic Raphael para assinar o roteiro de "De Olhos Bem Fechados" ("Eyes Wide Shut") se soubesse que o convívio resultaria também num livro como "Eyes Wide Open - A Memoir of Stanley Kubrick" (Olhos Bem Abertos -Recordações de Stanley Kubrick). A obra acaba de desembarcar nas livrarias americanas, aquecendo a expectativa em torno da estréia do filme no país, no próximo dia 16 (no Brasil, em setembro).
Uma polêmica sobre o pretenso anti-semitismo do judeu Kubrick marcou o aparecimento, no mês passado, de uma versão resumida da obra na "The New Yorker".
Frederic Raphael é um escritor de respeito, autor de uma dezena de romances e de roteiros impecáveis, como o da comédia romântica "Um Caminho para Dois" (67).
Ele bate logo continência ao "diretor de cinema que é um gênio" e "um mestre". Diz não ter visto seus dois primeiros filmes ("Fear and Desire", 53, e "A Morte Passou por Aqui", 55), mas admira os demais, exceto "Lolita" (62), que considera verborrágico. "Eyes Wide Open" reporta um tenso, mas cordial, embate de egos. Raphael reconhece a posição subalterna que aceitou frente ao "gênio", mas frisa a transitoriedade da situação.
Já no início, ele se protege, lembrando que Mastroianni ensinou-lhe que "cinema non è gran cosa". Seu livro defende outra tese, emprestada -e não creditada- de Gore Vidal: o da primazia do roteirista frente ao diretor na concepção da "substância de um filme".
Pobre Raphael. A maior negação de ambas as teses é Kubrick, um devoto do cinema e um cineasta agressivamente dominador da autoria de suas obras.
Cineasta e roteirista colaboraram de longe. Encontraram-se apenas quatro vezes, sempre no retiro de Kubrick em Hertfordshire, próximo a Londres. No mais, trocaram intensos telefonemas, muitas vezes diários.
Diferenças à parte, a intimidade permitiu a Raphael ir além dos biógrafos de Kubrick. O diretor surge como um artista autoritário e egocêntrico, que mantinha sempre um distanciamento respeitoso e evitava confrontos diretos. Era um ogro desleixado, de barba não aparada e jeans como uniforme. Mas suas mãos chamavam a atenção: alvas, delicadas e jovens para um septuagenário.
Raphael confirma-o como um erudito autodidata de curiosidade infinita. Discutiam literatura e história clássica, grega e romana. O roteirista é um especialista renomado, o diretor, um mero leitor voraz. A ironia permeava suas conversas, mas parecia que a Kubrick faltava humor.
"Eyes Wide Open" traz inúmeras curiosidades sobre "Eyes Wide Shut". O filme é uma adaptação para a Nova York contemporânea de "Traumnovelle" (História do Sonho), publicado em 1926 por Arthur Schnitzler (1862-1931). Por 30 anos, Kubrick tentou filmar a história das fantasias sexuais de um jovem casal burguês. Kubrick insistiu numa versão fiel a Schnitzler. Raphael fez valer sua experiência e convenceu o cineasta a aceitar uma variação no fim da trama.
Kubrick planejava usar uma dupla de atores casada na vida real para interpretar o casal. Kim Basinger e Alec Baldwyn chegaram a ser cogitados para os papéis que ficaram para Tom Cruise e Nicole Kidman. Como pista do universo visual que pretendia, Kubrick enviou a Raphael fotos eróticas de Helmut Newton e reproduções de Egon Schiele e Gustav Klimt.
O roteirista não esconde sua insatisfação com o resultado final. Acusa Kubrick de, após dois anos de ajustes e correções, ter estirpado muito da ambiguidade do enredo e da profundidade psicológica dos personagens. Reconhece, porém, que Kubrick "digeriu meu trabalho, mas sua estrutura e muitos dos detalhes estão lá na reescritura feita por ele".
É dentro desse quadro que se insere a polêmica sobre anti-semitismo. Kubrick e Raphael eram judeus americanos radicados na Inglaterra. A cultura judaica permeou muitas de suas conversas.
O cineasta, contudo, discordou da intenção de Raphael de frisar os elementos judaicos que o escritor considerava implícitos no original de Schnitzler. A certa altura, Raphael revela que Kubrick teria lhe dito que Hitler tinha estado "certo sobre quase tudo". Raphael não economiza espaço para expressar sua indignação frente à "piada sem graça", mas omite do leitor detalhes da conversa. Será coincidência o último volume ensaístico de Raphael entitular-se "A Necessidade do Anti-Semitismo"?
Seria injusto reduzir "Eyes Wide Open" a polêmicas e vinganças de ocasião. É desses livros que se devoram de sentada. Página após página, Raphael faz-nos sentir olhando pelo buraco da fechadura de uma das portas mais fechadas da história do cinema: a que permitia o acesso ao Kubrick de carne e osso. É um raríssimo caso em que se justifica um elogio à traição.


Livro: - Eyes Wide Open - A Memoir of Stanley Kubrick Autor: Frederic Raphael Lançamento: Ballantine, 1999 Quanto: US$ 12 (190 págs.) Onde encontrar: http://www.bn.com/

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