São Paulo, Quinta-feira, 05 de Agosto de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS
O assassino de Atlanta e a patrulha dos EUA

Em Atlanta, Georgia, na terça-feira passada, um tal de Mark Barton matou a mulher a marteladas. Na quarta, foi a vez dos filhos. Na quinta, saiu à rua, decidido a se vingar daqueles que, como ele escreveu, "avidamente procuraram minha ruína". Aí, armado com duas automáticas, matou nove pessoas. E feriu mais algumas. No fim do dia, parado pela polícia, deu um tiro na cabeça. Todo mundo saiu à caça de explicações.
Há a explicação pela conjuntura. Os lugares escolhidos por Barton para a matança foram dois escritórios de investimentos onde ele perdera bastante dinheiro.
Aliás, ele deixara de trabalhar para tentar viver de "day trading" -uma maneira de investir comprando e vendendo ações no mesmo dia. Muitos aproveitaram para observar que as notícias de ganhos no mercado de ações, de fortunas que se criam em poucos meses por novas companhias da Internet e outras repentinas riquezas estão destruindo os valores do trabalho e da poupança.
Quem não faz seu primeiro milhão aos 30 pode se sentir largado.
Houve as explicações pela patologia presumida do assassino. Tipo: "Ele deve ter sido vítima de algum abuso infantil, sexual ou não". O que, aliás, é sempre possível confirmar pois, em algum momento, qualquer um levou um tapa na bunda ou encontrou uma "Playboy" no banheiro dos pais (e isso pode ser abuso nos EUA). Ou ainda: "Se ele perdeu muito dinheiro, podia estar sofrendo de desordens pós-traumáticas". Eta sutileza clínica!
Muitos acusaram também a facilidade de acesso às armas.
Conclusões: é necessário encontrar um jeito de regulamentar o investimento selvagem e de dificultar o acesso às armas. É também necessário impedir o abuso sobre as crianças. Assim, teremos adultos bem equilibrados.
Ótimo. Mas perceberam o truque? É simples: só existem as questões para as quais é possível propor uma solução prática. É a outra face da eficiência norte-americana: a sociedade só pensa seus problemas na medida em que possam ser resolvidos por uma boa patrulha. A patrulha se tornou a condição de possibilidade da ideologia social norte-americana. Pensa-se a partir da patrulha.
Existem algumas questões da vida social não resolvidas nos últimos milênios? Tipo relações pais-filhos, relação entre os sexos, convivência entre etnias e culturas diferentes? Faça-se uma lei. E mandem os marines!
O pragmatismo ambiente é eficiente na medida em que ignora os problemas que estão fora do alcance de uma ação corretiva. Visto de nossa tradição latina, retórica e verbosa, é uma grande vantagem. Os norte-americanos agem quando a gente ainda está para começar a discutir sobre o que fazer. Mas esta denegação "eficiente" cobra seu preço.
Voltemos ao episódio de Atlanta. É possível que, com a globalização e a americanização, esse tipo de matança se popularize pelo mundo afora. Mas, até agora, é quase exclusivamente norte-americana. Nos últimos dez anos, nos EUA, houve uns 20 episódios deste estilo.
Mas qual é o estilo? O assassinato de mulher e filhos com suicídio final é banal em qualquer cultura. Também a vingança como motivação seria banal, se não fosse o caráter indefinido das vítimas. Barton matou quem estava ali, conhecido ou não.
Ele escolheu um lugar diretamente ligado a seu fracasso concreto do momento (a perda de dinheiro) e saiu atirando.
Na longa série das matanças norte-americanas dos últimos anos, o princípio é o mesmo. Os jovens estudantes mal-integrados de Columbine High School, por exemplo, não escolheram matar apenas seus inimigos: foram para o lugar de sua infelicidade e atiraram.
Para os assassinos, o extermínio é uma declaração de fé no pragmatismo norte-americano: não existe nada que não possa ser reduzido a uma série de causas sobre as quais deve ser possível agir. A paranóia é facilitada e encorajada: minhas dores, meus fracassos, minhas besteiras devem ter responsáveis sobre os quais seja mais fácil agir do que sobre os abismos de minha psique.
Portanto, em vez de me questionar, ou mesmo simplesmente me matar, antes vou sair de patrulha. E levar os "culpados" comigo. Ou seja, os exterminadores norte-americanos são a expressão imediata da ideologia patrulheira dominante.
Eles realizam o sonho racionalista dessa ideologia: nenhuma dor que não seja redutível à "clara" responsabilidade de alguns. E nenhum fato que não possa ser remediado.
O catálogo das besteiras clínicas sobre Barton vai na mesma direção: os problemas só podem ser efeitos de abuso e trauma, sempre deve haver algum fato real que explique as coisas e possa então ser corrigido e alterado. Só são reconhecidos os problemas que nos deixam a ilusão de tomar nosso destino nas mãos.
Se continuar assim, a cultura norte-americana, além de não conseguir mais pensar a complexidade do humano, do erótico e do político, ainda vai se tornar muito perigosa -para si mesma e para todos os outros, como uma espécie de patrulha paranóica permanente, solta pelas ruas do mundo.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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