|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
O assassino de Atlanta e a patrulha dos EUA
Em Atlanta, Georgia, na terça-feira passada, um tal de Mark
Barton matou a mulher a marteladas. Na quarta, foi a vez dos filhos. Na quinta, saiu à rua, decidido a se vingar daqueles que, como
ele escreveu, "avidamente procuraram minha ruína". Aí, armado
com duas automáticas, matou
nove pessoas. E feriu mais algumas. No fim do dia, parado pela
polícia, deu um tiro na cabeça.
Todo mundo saiu à caça de explicações.
Há a explicação pela conjuntura. Os lugares escolhidos por Barton para a matança foram dois
escritórios de investimentos onde
ele perdera bastante dinheiro.
Aliás, ele deixara de trabalhar
para tentar viver de "day trading"
-uma maneira de investir comprando e vendendo ações no mesmo dia. Muitos aproveitaram para observar que as notícias de ganhos no mercado de ações, de fortunas que se criam em poucos meses por novas companhias da Internet e outras repentinas riquezas estão destruindo os valores do
trabalho e da poupança.
Quem não faz seu primeiro milhão aos 30 pode se sentir largado.
Houve as explicações pela patologia presumida do assassino. Tipo: "Ele deve ter sido vítima de algum abuso infantil, sexual ou
não". O que, aliás, é sempre possível confirmar pois, em algum momento, qualquer um levou um tapa na bunda ou encontrou uma
"Playboy" no banheiro dos pais (e
isso pode ser abuso nos EUA). Ou
ainda: "Se ele perdeu muito dinheiro, podia estar sofrendo de
desordens pós-traumáticas". Eta
sutileza clínica!
Muitos acusaram também a facilidade de acesso às armas.
Conclusões: é necessário encontrar um jeito de regulamentar o
investimento selvagem e de dificultar o acesso às armas. É também necessário impedir o abuso
sobre as crianças. Assim, teremos
adultos bem equilibrados.
Ótimo. Mas perceberam o truque? É simples: só existem as questões para as quais é possível propor uma solução prática. É a outra face da eficiência norte-americana: a sociedade só pensa seus
problemas na medida em que
possam ser resolvidos por uma
boa patrulha. A patrulha se tornou a condição de possibilidade
da ideologia social norte-americana. Pensa-se a partir da patrulha.
Existem algumas questões da vida social não resolvidas nos últimos milênios? Tipo relações pais-filhos, relação entre os sexos, convivência entre etnias e culturas diferentes? Faça-se uma lei. E mandem os marines!
O pragmatismo ambiente é eficiente na medida em que ignora
os problemas que estão fora do alcance de uma ação corretiva. Visto de nossa tradição latina, retórica e verbosa, é uma grande vantagem. Os norte-americanos agem
quando a gente ainda está para
começar a discutir sobre o que fazer. Mas esta denegação "eficiente" cobra seu preço.
Voltemos ao episódio de Atlanta. É possível que, com a globalização e a americanização, esse tipo de matança se popularize pelo
mundo afora. Mas, até agora, é
quase exclusivamente norte-americana. Nos últimos dez anos, nos
EUA, houve uns 20 episódios deste estilo.
Mas qual é o estilo? O assassinato de mulher e filhos com suicídio
final é banal em qualquer cultura. Também a vingança como
motivação seria banal, se não fosse o caráter indefinido das vítimas. Barton matou quem estava
ali, conhecido ou não.
Ele escolheu um lugar diretamente ligado a seu fracasso concreto do momento (a perda de dinheiro) e saiu atirando.
Na longa série das matanças
norte-americanas dos últimos
anos, o princípio é o mesmo. Os
jovens estudantes mal-integrados
de Columbine High School, por
exemplo, não escolheram matar
apenas seus inimigos: foram para
o lugar de sua infelicidade e atiraram.
Para os assassinos, o extermínio
é uma declaração de fé no pragmatismo norte-americano: não
existe nada que não possa ser reduzido a uma série de causas sobre as quais deve ser possível agir.
A paranóia é facilitada e encorajada: minhas dores, meus fracassos, minhas besteiras devem ter
responsáveis sobre os quais seja
mais fácil agir do que sobre os
abismos de minha psique.
Portanto, em vez de me questionar, ou mesmo simplesmente me
matar, antes vou sair de patrulha.
E levar os "culpados" comigo. Ou
seja, os exterminadores norte-americanos são a expressão imediata da ideologia patrulheira
dominante.
Eles realizam o sonho racionalista dessa ideologia: nenhuma
dor que não seja redutível à "clara" responsabilidade de alguns. E
nenhum fato que não possa ser
remediado.
O catálogo das besteiras clínicas
sobre Barton vai na mesma direção: os problemas só podem ser
efeitos de abuso e trauma, sempre
deve haver algum fato real que
explique as coisas e possa então
ser corrigido e alterado. Só são reconhecidos os problemas que nos
deixam a ilusão de tomar nosso
destino nas mãos.
Se continuar assim, a cultura
norte-americana, além de não
conseguir mais pensar a complexidade do humano, do erótico e
do político, ainda vai se tornar
muito perigosa -para si mesma
e para todos os outros, como uma
espécie de patrulha paranóica
permanente, solta pelas ruas do
mundo.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Arquitetura: Polêmico Jurado ganha CD-ROM Próximo Texto: Espetáculo: João Gilberto e Caetano abrem maior casa de shows do país Índice
|