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Patrioticamente, Um Programa de Índio
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Estava escrito: eu não terminaria meus dias sobre a face
da Terra sem antes cumprir
um legítimo programa de índio. Diga-se, como preliminar,
que as minhas relações com os
índios são as mais distantes. A
rigor, só conheço índio de Carnaval e, por Júpiter! não os
aprecio. São, de longe, os blocos mais fedorentos e sujos.
Eis que os trancos da vida me
levaram ao Pantanal e, em seguida, ao Bananal. Pântanos e
bananas à parte, valeu. Valeu
sobretudo pela visita que fiz a
uma aldeia às margens do
Araguaia, uma tribo da qual
não me dei ao respeito de sequer guardar o nome. Que
eram índios, eram. Não fediam como os índios de nossos
carnavais, nem eram tão agitados.
A aldeia não está longe da
chamada civilização: em meia
hora de lancha, cortando em
diagonal o grande rio, chega-se lá. Não se paga pedágio,
mas não se pode fotografar
nem fazer perguntas. Eles se
encarregam de fornecer respostas não pedidas. Em duas
ou três cabanas, a antena de
televisão leva as mazelas dos
cara-pálidas até a tribo.
A Funai se esforça para ajudar desajudando ou desajudar
ajudando -é muito difícil
compreender o que ela realmente faz. Mal saltei nas margens, esbarrei com um velho
trator desmontado e comido
pela ferrugem. Algum abnegado, amigo dos índios, descolou
aquele trator para ajudar os
índios a arar a floresta. A floresta não foi arada e o trator
se decompôs, apodrecendo ao
tempo como um cadáver mutilado.
Ainda na periferia da aldeia
havia aquele tipo de mercado
que há em Roma, Jerusalém,
Paris e Juazeiro: venda de bugigangas tidas e havidas como
lembranças. Recusei dois papagaios, uma enorme e malcheirosa manta de pirarucu
salgada e cheia de moscas, um
remo, um bodoque e algumas
penas coloridas.
Os preços lá na aldeia ainda
não estão alarmantes. Aparentemente, índio ainda não entende de dólar e desconfia da
inflação, pensando que se trata de mais um truque da civilização branca para embromar
a tribo. Eu podia ter levado
papagaios, remo, pirarucu e
penas coloridas por uma ninharia e, embora não esteja a
par do preço desses importantes itens no mercado, acredito
que não estaria sendo roubado.
O diabo é que não teria o que
fazer com tais e tamanhas preciosidades. Deixei-as com seus
legítimos donos. Só então, já
mais para o interior da aldeia,
tomei conhecimento de verdadeiros índios de pele, carne, osso, penas e folhagens.
Eles realizavam uma cerimônia qualquer. Cada atalho que
levava ao centro da aldeia tinha dois caras vestidos da cabeça aos pés com enormes palhas, uma fantasia que nem o
Joãosinho Trinta, em seus melhores momentos, teria coragem e imaginação para bolar.
Andavam de dois em dois, no
mesmo ritmo, emitindo um
som que mais parecia um grunhido de dor. Ignoraram a presença do branco e continuaram na deles.
De outros atalhos, de tempos
em tempos, surgiam outras duplas igualmente vestidas e grunhindo o mesmo grito de dor.
Iam e vinham cadencialmente,
andavam e recuavam, esconjurando os maus espíritos da
floresta.
Não, não era bem isso. Quando todos os atalhos estavam
ocupados, descobri a razão de
tantos grunhidos e passinhos
pra frente e pra trás. Três índias adolescentes, 15 anos no
máximo, faziam sua cerimônia de iniciação, elas estavam
vestidas sumariamente, uma
pequena tanga feita de saco de
linhagem, cobrindo apenas a
parte da frente -e mal.
Traziam flores nas mãos, a
cabeça baixa, olhando o chão.
As pernas pintadas, as coxas
nuas, queimadas pelo sol da
floresta. Os seios também nus
-e não vou cair no lugar-comum de elogiar os seios de
adolescentes índias. Elas estavam sérias, concentradas,
olhos baixos, movendo os pulsos ao ritmo dos grunhidos que
os machos emitiam -menos o
macho que era eu, meio engasgado diante daquele espetáculo que -confesso- nem no
Lido de Paris, nem no Quarteirão dos Prazeres de Hamburgo, vi igual, e tão emocionante.
Lentamente, duas delas passaram rente a mim. Eu sabia
que elas estavam inteiramente
nuas na parte de trás e, por um
momento, pensei em cometer a
ação tão nobre do carioca
quando vê mulher boa: virar o
rosto e avaliar aquela região
que é considerada absoluta
preferência nacional.
Súbito me lembrei da advertência que me fizeram: aqueles
índios ainda usavam flechas
envenenadas para mostrar desagrados guerreiros e lavar
ofensas morais. Imaginei que,
de alguma árvore, haveria índios tomando conta daquelas
donzelas e fiscalizando o branco que invadira tão sagrado
território. Eu me compenetrei
como se estivesse numa igreja,
num velório. Não ficaria bem à
minha posteridade morrer flechado por um comportamento
indecente, embora, no fundo
de mim mesmo, eu me perdoasse.
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