São Paulo, sexta, 5 de setembro de 1997.



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Patrioticamente, Um Programa de Índio

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Estava escrito: eu não terminaria meus dias sobre a face da Terra sem antes cumprir um legítimo programa de índio. Diga-se, como preliminar, que as minhas relações com os índios são as mais distantes. A rigor, só conheço índio de Carnaval e, por Júpiter! não os aprecio. São, de longe, os blocos mais fedorentos e sujos.
Eis que os trancos da vida me levaram ao Pantanal e, em seguida, ao Bananal. Pântanos e bananas à parte, valeu. Valeu sobretudo pela visita que fiz a uma aldeia às margens do Araguaia, uma tribo da qual não me dei ao respeito de sequer guardar o nome. Que eram índios, eram. Não fediam como os índios de nossos carnavais, nem eram tão agitados.
A aldeia não está longe da chamada civilização: em meia hora de lancha, cortando em diagonal o grande rio, chega-se lá. Não se paga pedágio, mas não se pode fotografar nem fazer perguntas. Eles se encarregam de fornecer respostas não pedidas. Em duas ou três cabanas, a antena de televisão leva as mazelas dos cara-pálidas até a tribo.
A Funai se esforça para ajudar desajudando ou desajudar ajudando -é muito difícil compreender o que ela realmente faz. Mal saltei nas margens, esbarrei com um velho trator desmontado e comido pela ferrugem. Algum abnegado, amigo dos índios, descolou aquele trator para ajudar os índios a arar a floresta. A floresta não foi arada e o trator se decompôs, apodrecendo ao tempo como um cadáver mutilado.
Ainda na periferia da aldeia havia aquele tipo de mercado que há em Roma, Jerusalém, Paris e Juazeiro: venda de bugigangas tidas e havidas como lembranças. Recusei dois papagaios, uma enorme e malcheirosa manta de pirarucu salgada e cheia de moscas, um remo, um bodoque e algumas penas coloridas.
Os preços lá na aldeia ainda não estão alarmantes. Aparentemente, índio ainda não entende de dólar e desconfia da inflação, pensando que se trata de mais um truque da civilização branca para embromar a tribo. Eu podia ter levado papagaios, remo, pirarucu e penas coloridas por uma ninharia e, embora não esteja a par do preço desses importantes itens no mercado, acredito que não estaria sendo roubado.
O diabo é que não teria o que fazer com tais e tamanhas preciosidades. Deixei-as com seus legítimos donos. Só então, já mais para o interior da aldeia, tomei conhecimento de verdadeiros índios de pele, carne, osso, penas e folhagens.
Eles realizavam uma cerimônia qualquer. Cada atalho que levava ao centro da aldeia tinha dois caras vestidos da cabeça aos pés com enormes palhas, uma fantasia que nem o Joãosinho Trinta, em seus melhores momentos, teria coragem e imaginação para bolar. Andavam de dois em dois, no mesmo ritmo, emitindo um som que mais parecia um grunhido de dor. Ignoraram a presença do branco e continuaram na deles.
De outros atalhos, de tempos em tempos, surgiam outras duplas igualmente vestidas e grunhindo o mesmo grito de dor. Iam e vinham cadencialmente, andavam e recuavam, esconjurando os maus espíritos da floresta.
Não, não era bem isso. Quando todos os atalhos estavam ocupados, descobri a razão de tantos grunhidos e passinhos pra frente e pra trás. Três índias adolescentes, 15 anos no máximo, faziam sua cerimônia de iniciação, elas estavam vestidas sumariamente, uma pequena tanga feita de saco de linhagem, cobrindo apenas a parte da frente -e mal.
Traziam flores nas mãos, a cabeça baixa, olhando o chão. As pernas pintadas, as coxas nuas, queimadas pelo sol da floresta. Os seios também nus -e não vou cair no lugar-comum de elogiar os seios de adolescentes índias. Elas estavam sérias, concentradas, olhos baixos, movendo os pulsos ao ritmo dos grunhidos que os machos emitiam -menos o macho que era eu, meio engasgado diante daquele espetáculo que -confesso- nem no Lido de Paris, nem no Quarteirão dos Prazeres de Hamburgo, vi igual, e tão emocionante.
Lentamente, duas delas passaram rente a mim. Eu sabia que elas estavam inteiramente nuas na parte de trás e, por um momento, pensei em cometer a ação tão nobre do carioca quando vê mulher boa: virar o rosto e avaliar aquela região que é considerada absoluta preferência nacional.
Súbito me lembrei da advertência que me fizeram: aqueles índios ainda usavam flechas envenenadas para mostrar desagrados guerreiros e lavar ofensas morais. Imaginei que, de alguma árvore, haveria índios tomando conta daquelas donzelas e fiscalizando o branco que invadira tão sagrado território. Eu me compenetrei como se estivesse numa igreja, num velório. Não ficaria bem à minha posteridade morrer flechado por um comportamento indecente, embora, no fundo de mim mesmo, eu me perdoasse.



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