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Zélia Salgado, 100, ganha revisão crítica em catálogo de museu no Rio; obras-chave se perderam
Esculpir o tempo
MARIO GIOIA
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
A história da arte moderna brasileira não é a mesma sem a presença de uma senhora de cem
anos que vive em um amplo apartamento próximo ao Palácio das
Laranjeiras, no Rio, e que diariamente admira o grande painel
que recebeu de presente de Roberto Burle Marx (1909-1994).
"Ele era muito meu amigo... Estudamos juntos na Escola Nacional de Belas Artes", conta Zélia
Salgado, fitando os tons azuis e
verdes da tela de sua sala, também
repleta de obras de sua autoria,
"que alteram a compreensão da
escultura no país", segundo Paulo
Herkenhoff, diretor do MNBA
(Museu Nacional de Belas Artes).
A instituição tem no acervo 30
obras da artista.
Herkenhoff deve lançar até outubro, quando Zélia completa 101
anos, um catálogo que deve recolocar a artista no debate artístico
nacional. É uma das raras obras
sobre a artista paulistana -"mas
sou carioca de coração", frisa
ela-, que, com Amilcar de Castro (1920-2002), Mary Vieira
(1927-2001) e Franz Weissmann
(1911-2005), rompeu a percepção
da obra de arte em três dimensões
por aqui, sendo precursora da revolução empreendida posteriormente pela já canônica Lygia
Clark (1920-1988).
"Lygia tinha aulas no ateliê de
Roberto. Ele viajava muito. Quando ele não estava, eu assumia as
aulas", lembra ela. Antes de a artista explodir com os "Bichos",
em 1960, segundo a família de Zélia, Lygia ficou muito impressionada com a produção da professora-substituta no final dos anos
50, como "Aspiração Vertical".
Nesse ponto, há um vácuo na
história da arte brasileira. "Ocorre
um verdadeiro desastre", conta
Herkenhoff. No período, o Itamaraty promoveu exposições itinerantes. Trabalhos de Zélia foram
enviados para França, Itália, Alemanha, Argentina e Chile. Cerca
de 20 obras não voltaram mais.
"Há registros inequívocos delas
em catálogos do MAM do Rio
[em 1960] e da Bienal de São Paulo [a quinta edição, em 1959], em
que se percebe seu avançado tratamento do espaço", afirma.
Observando imagens delas, Zélia
baixa o olhar e comenta, em voz
hesitante: "Não me lembro muito
bem...". Segundo familiares, ela
não gosta de tocar no assunto e
não recebeu informações sobre o
extravio de suas obras. "Nunca
houve por parte dela uma reivindicação forte", diz Herkenhoff.
Procurado pela Folha, o Itamaraty, por meio de sua assessoria
de imprensa, informou que a localização de dados sobre as obras
e sobre o eventual extravio não seria possível sem uma investigação
aprofundada em seus arquivos.
Em Brasília, ironicamente, um
jardim interno abriga "Folhagens", escultura de grandes dimensões de Zélia.
Formação
Um outro nome-chave vai unir
as trajetórias de Zélia e Lygia: o do
russo Isaac Dobrinsky (1891-1973). "Ele me ensinou muito. Era
muito pobre, morava com a mulher e o filhinho numa sala que
servia para tudo", lembra Zélia.
Professor dela na parisiense Académie de la Grand Chaumière em
1937-38, discutia com os alunos a
percepção da obra de arte, levando-os para diversos museus.
Anos mais tarde, ministraria aulas para Lygia Clark.
"Lygia sempre dizia que era seu
melhor professor, mas não se sabia muito bem o porquê. Zélia retoma a história e conta que foi ela
quem o indicou à jovem", diz
Herkenhoff.
"Ela [Zélia] teve um trabalho
muito relevante na escultura nos
anos 50", avalia o poeta e crítico
de arte Ferreira Gullar. "Lembro-me de seu ateliê na Vieira Souto
[em Ipanema], onde encontrei
Clarice Lispector."
Autora de uma das esparsas entrevistas com Zélia -em seu livro
"Abstracionismo Geométrico e
Informal"-, a artista plástica
Anna Bella Geiger, 72, atesta seu
caráter pioneiro. "Não há dúvidas
de que a sua produção escultórica
influencia seus contemporâneos e
estabelece novos parâmetros para
a época", afirma Geiger.
Zélia sorri ao lembrar que omitia cinco anos de sua idade em
mostras para não parecer mais
velha que Burle Marx. E, mesmo
tendo parado de produzir em seu
centenário, no ano passado, ainda
deve motivar mais ensaios, antologias e pesquisas.
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