São Paulo, sexta-feira, 05 de setembro de 2008

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CINEMA

Crítica/"Linha de Passe"

Filme se opõe ao "cinema de pobre"

Com aspecto documental, "Linha de Passe" retrata universo dos "sem esperança" e reforça humanismo de Walter Salles

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Não convém a Walter Salles (com ou sem Daniela Thomas) ser um novo Glauber Rocha. Hoje está bem claro que ele está mais perto de ser um novo Roberto Santos: um humanista por excelência. É nessa direção que vai a maior parte de sua obra, inclusive "Linha de Passe", uma espécie de oposto simétrico do "cinema brasileiro de pobre" -hoje tão em voga. Na trama, Cleuza, a mãe (papel que deu a Sandra Corveloni prêmio de melhor atriz em Cannes, que poderia se estender ao elenco central), trabalha como faxineira e representa, com seus filhos, o universo dos "sem esperança" da grande cidade. Dinho é trabalhador e evangélico. Dario aspira tornar-se jogador profissional de futebol. O mais velho, Dênis, é um motoboy "bon vivant". O caçula é o inquieto Reginaldo. O que os autores do filme fazem é quase tomar o espectador pela mão para mostrar-lhe esse mundo, o dos pobres, que na fantasia da classe média freqüentadora de cinemas existe, basicamente, para colocar em risco seus bens e vidas. O respeito com que Salles e a co-diretora Daniela Thomas observam os personagens é tocante (quase exagerado, por vezes). Ao tratar de Dinho, o evangélico, nenhum sinal de sarcasmo: respeita-se o crente e sua crença. Salles evita a tentação, entre outras, de ver no pastor um vigarista. O mesmo, em linhas gerais, aplica-se aos demais protagonistas. Esse núcleo se constitui, é verdade, a poder de lugares-comuns. No caso, não é uma deficiência. Considerando a variedade dos tipos, os lugares-comuns importam pela eficácia que imprimem à narração.

Veia documental
O mais, a medula deste filme, vem em grande parte de seu aspecto documental. Exemplos: os aspirantes a futebolistas aproximando seus rostos de um guichê, declinando os nomes e idades; os fiéis cantando na igreja; as motos enfrentando as rudezas do trânsito. Devido, em boa parte, à força desse aspecto documental, temos a sensação de que os protagonistas podem, a qualquer momento, pagar um preço muito alto por seus pequenos pecados -e isso está muito longe de ser idealização. No final, "Linha de Passe" tem um preço a pagar pela facilidade com que envolve o espectador. Se a fluência da narração o leva a superar mesmo algumas fraquezas do roteiro (como a cena em que Dario é dopado pelos garotos ricos), no final os lugares-comuns aparecem para cobrar a conta: as soluções encontradas para parte dos conflitos sofrem da necessidade de satisfazer a uma visão preconcebida -o que as leva a parecer por vezes arbitrárias. Por conta disso, o terço final do filme dá umas patinadas, embora não chegue a perder a estima que até então conquistara, o que acontece devido ao fato de "Linha de Passe" manter um norte, que coincide com uma antiga preocupação de Salles: a ausência e busca do pai. Os filhos do filme dividem-se entre aqueles que procuram o pai (Dinho busca-o em Deus; Reginaldo, nos motoristas de ônibus) e os que não buscam. Os primeiros são os mais bem-sucedidos, isto é, encaminham seu desfecho com mais força e naturalidade que os demais.

LINHA DE PASSE
Produção: Brasil, 2008
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas
Quando: estréia hoje no Espaço Unibanco, Reserva Cultural e circuito
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos
Avaliação: ótimo



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