São Paulo, sexta-feira, 05 de setembro de 2008

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CINEMA / ESTRÉIAS

Crítica/"O Aborto dos Outros"

Documentário encara aborto com respeito e sem panfletarismo

Imagens são registradas com cuidado por Carla Gallo, que buscou situações em que "ter um filho pode ser uma prisão"

CRÍTICO DA FOLHA

Se depois de entrar na sala de exibição ainda restar alguma dúvida no espectador sobre a natureza da jornada de "O Aborto dos Outros", ela se dissipará logo na primeira seqüência. Maria, uma menina de 13 anos, conta a uma psicóloga do serviço público de saúde as circunstâncias de sua gravidez (de nove semanas): foi estuprada. Em gabinete hospitalar que parece aumentar seu drama, ela ouve que pode escolher entre três opções: ter a criança e criá-la, ter a criança e doá-la, ou fazer um aborto previsto por lei (no Artigo 128 do Código Penal). "Você já pensou, conversou com sua mãe?", indaga a psicóloga. Sim, Maria já pensou e conversou com a família. E diz o que (e por que motivo) pretende fazer. Outras imagens de consultas e atendimentos a adolescentes e mulheres grávidas vêm na seqüência, registradas com imenso cuidado. Operadas pela diretora Carla Gallo e pela diretora de fotografia Julia Zakia (com a colaboração de Aloysio Raulino), as câmeras poupam os rostos de muitas personagens, mesmo quando legalmente algumas poderiam aparecer. A certa altura, por exemplo, vemos apenas uma torneira pingando enquanto ouvimos um depoimento aterrador (ainda mais porque narrado com naturalidade) de uma vendedora de iogurte que diz ter recorrido ao que chama de "mãe-de-anjo" para fazer um aborto clandestino. À medida que a história avança, com outros abortos, a torneira "seca".

"Situação-limite"
Esses procedimentos de captação de imagens e de montagem (assinada por Idê Lacreta) demonstram respeito, tanto pelas personagens quanto pelo espectador -em oposição a certo telejornalismo que, por desrespeito a todos, mais parece um caçador de lágrimas. Não há narração ou música, apenas diálogos e ruídos do ambiente. Por princípios éticos e estéticos que caminham juntos, as câmeras de "Aborto" podem até não encarar algumas personagens, mas isso não significa que o documentário não encare o tema com firmeza. Ao contrário: sua estrutura se presta, com eficácia didática, a uma jornada de esclarecimento sobre "a maternidade em situação-limite", como resume o material de divulgação. Na primeira parte, descrita acima em linhas gerais, são colhidos depoimentos, sobretudo em quatro hospitais públicos onde há o Programa de Aborto Legal (Pérola Byington, Unifesp, Unicamp e do Jabaquara). Feita a imersão concreta no que representa esse problema para "os outros", o documentário então se dedica, na parte final, a reflexões serenas, sem panfletarismo, sobre o estágio do tratamento à questão do aborto no Brasil e no mundo. É o momento em que especialistas no tema entram em cena e dados objetivos iluminam o cenário. Estima-se, por exemplo, que ocorram em todo o mundo 70 mil mortes por ano em virtude de abortamentos inseguros, 95% nos países em desenvolvimento, onde, em geral, as leis são mais restritivas. Premiada com menção especial na mostra competitiva do festival É Tudo Verdade de 2008, Carla Gallo diz que se voltou para situações em que "ter um filho pode representar uma prisão". Se a experiência de assistir a "O Aborto dos Outros" coubesse em uma frase, aí estaria uma boa maneira de tentar resumi-lo.
(SÉRGIO RIZZO)

O ABORTO DOS OUTROS
Produção: Brasil, 2008
Direção: Carla Gallo
Quando: estréia hoje nos cines UOL
Lumière e HSBC Belas Artes
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos
Avaliação: bom



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