São Paulo, sábado, 5 de setembro de 1998

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Cifras, valores e a grande tragédia russa

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

A crise está nos verbos. Nas palavras em geral e naquelas que exprimem ação. No momento, dois verbos detêm a hegemonia do vocabulário: despencar e disparar. Emblemas do desvario e da inclinação para o apocalipse.
Denotam carreira, velocidade, competição, disputa alucinada. Nosso repertório vocabular confinou-se ao febril sobe-e- desce, gangorra linguística e existencial que não contempla a estabilidade.
Despencar e disparar estão sendo largamente empregados tanto para traduzir em números as oscilações das preferências eleitorais, como para apregoar o pregão bursátil (ou bolsista), infernal dominó de pontuações e percentagens que nada têm a ver com a lógica e a racionalidade.
Cifra vem do árabe "cifr", de vazio, zero, segundo o Aurélio, baseado em Bluteau e nas duas primeiras edições do Morais. Sem ser propriamente um hebraísta, ouso contrapor a hipótese de que cifra vem de safar, numerar, contar (o que explicaria a origem de safra, contagem da colheita).
A presença de tantos judeus como cobradores de impostos na Espanha e em Portugal, antes da Expulsão, explicaria a ponte idiomática.
A etimologia conta menos do que a evolução semântica porque no século 17, no despertar do cartesianismo, o polígrafo d. Francisco Manuel de Mello já usava o verbo cifrar em direção oposta -para designar algo oculto. De-cifrar seria "desnumerar". Óbvios e indiscutíveis, números acabaram escondidos e herméticos.
O culto numerológico e os seus verbos fulminantes são em grande parte promovidos pelo estilo jornalístico vigente. Mais fácil reduzir tudo a um placar de cifras do que decifrar e interpretar o sentido das novidades.
Já vi manchetes empregando o velocíssimo verbo "arrancar" para uma subida de dois pontos em sondagem de opinião, quando se sabe que a margem de erro é normalmente de três pontos para cima ou para baixo. Arrancada fictícia, trepidação imóvel.
Manchetes sobre o desempenho das bolsas servem-se de índices que não medem o quociente psicológico, de capital importância num sistema mercurial de informações como o atual.
Processo especulativo, imediatista, que descarta tendências e potencialidades. A crise real é em grande parte uma crise virtual e isso de tal forma que não se consegue distinguir o fato da reverberação, nem separar causa de efeito.
Incomodado com o dilema mitológico consagrado em Wall Street, onde o touro representa a tendência para subir, e o urso, a inclinação para a queda, o famoso financista Warren Buffet sentenciou: "O touro ganha, o urso ganha; apenas o burro perde" (na realidade disse "pig" -porco).
Bolsas funcionam durante algumas horas, cinco dias por semana, mas o mercado jamais fecha, nem para balanço. Suas principais leis ainda não foram revogadas e, como o segredo é a alma do negócio, nem sequer enunciadas. Denominadas como "bolsas de valores", negociam valores mobiliários, móveis. Por isso, voláteis.
Mas há um conjunto de valores intrínsecos que não despencam e não disparam. Não são cotados, nem quotizáveis. Inteiriços e permanentes, balizam o comportamento, dão as referências, servem de marcos. Não cabem em etiquetas. Escapam aos marqueteiros porque o marketing, embora calcado em números, é ilusório e aleatório. Frequentemente inexato.
Exemplo dramático, logo contornado, foi o movimento dos marqueteiros do PT, nos primeiros momentos da campanha eletrônica, quando tentaram substituir o vermelho revolucionário pelo branco sossegado. Estavam atrás de melhores números ignorando valores, compromissos.
Antes de maio de 98, quando se mencionava o tigre da Indonésia, pensava-se no longevo ditador Suharto. A globalização que o consagrou levou-o de roldão e na ultima edição do "New York Review of Books" (13/8/98) admite-se que está em curso um processo inexorável de reformas democráticas e renascimento do país.
Cartaz da ultima edição da revista "Veja" (sobre o pânico das bolsas) é sugestivo: "A Rússia conseguiu o que queria, colocou o mundo no vermelho". Rússia quer dizer Ieltsin, mas será Ieltsin a Rússia? O último estágio da crise russa começou por causa de uma "barriga" da CBS, anunciando a renúncia do presidente.
Nas manchetes as bolsas despencaram e, para desmenti-las, o homem fez a única coisa que sabe fazer -demitiu sumariamente Anatoli Chubais, o negociador da dívida externa que já fora seu preferido.
Bill Clinton foi à Rússia reforçar os ânimos visando à implementação das reformas estruturais em direção da economia de mercado. O problema russo não é conceitual ou ideológico, é orgânico. A questão lá não é a de um Estado máximo ou mínimo: não há Estado. Desmontou-se uma complicada estrutura construída ao longo de 70 anos de comunismo e, em seu lugar, deixou-se um vazio.
Mikhail Gorbatchov, culto e sofisticado, sabia que o processo de substituição deveria ser lento, gradual e seguro. Ieltsin, apoiado pelo Ocidente, especialmente a Alemanha, ávida por novos triunfos e novos mercados depois da reunificação, passou-lhe uma rasteira.
Fracassou porque não é estadista, é um boçal. Está contado em livro, com detalhes preciosos, por Aleksandr Korzhakov, agente da KGB, seu guarda- costas durante 20 anos, espécie de Rasputin afinal alijado do poder num dos sucessivos golpes de mão nos corredores do Kremlin.
Ieltsin ganhou as primeiras páginas do mundo em agosto de 1991, com a célebre fotografia na torre de um tanque exortando o povo contra os golpistas. Poucos prestaram atenção ao detalhe: segurava um papel no qual lia sua proclamação, incapaz de improvisar um pensamento articulado naquele momento decisivo.
Saído da mesma matriz daqueles memoráveis tipos e arquétipos que desde o fim do século passado povoam e influenciam a cultura ocidental, Boris Nicolaievitch Ieltsin, é engenheiro-construtor de profissão. Mas sua obra maior foi a demolição da mansão Ipatiev (onde os Romanoff passaram os últimos dias antes do fuzilamento).
Algo me diz que esse instinto de demolidor está fatalmente enredado à inexorável compulsão russa para os desfechos trágicos. Os verbos das manchetes e as cifras dos pregões são fáceis de imaginar.
Nota: Virgílio Maia, poeta, pesquisador e linguista de Fortaleza, sugere uma explicação para o provérbio "Agosto, mês do Desgosto", que, aparentemente, só existe em português: a 4 de agosto de 1578 desaparecia em Alcácer-Quibir o rei d. Sebastião, criando o "Desgosto- Mor" da história lusitana.



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