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Cifras, valores e a grande tragédia russa
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
A crise está nos verbos. Nas
palavras em geral e naquelas
que exprimem ação. No momento, dois verbos detêm a hegemonia do vocabulário: despencar e disparar. Emblemas
do desvario e da inclinação para o apocalipse.
Denotam carreira, velocidade, competição, disputa alucinada. Nosso repertório vocabular confinou-se ao febril sobe-e-
desce, gangorra linguística e
existencial que não contempla
a estabilidade.
Despencar e disparar estão
sendo largamente empregados
tanto para traduzir em números as oscilações das preferências eleitorais, como para apregoar o pregão bursátil (ou bolsista), infernal dominó de pontuações e percentagens que nada têm a ver com a lógica e a
racionalidade.
Cifra vem do árabe "cifr", de
vazio, zero, segundo o Aurélio,
baseado em Bluteau e nas duas
primeiras edições do Morais.
Sem ser propriamente um hebraísta, ouso contrapor a hipótese de que cifra vem de safar,
numerar, contar (o que explicaria a origem de safra, contagem
da colheita).
A presença de tantos judeus
como cobradores de impostos
na Espanha e em Portugal, antes da Expulsão, explicaria a
ponte idiomática.
A etimologia conta menos do
que a evolução semântica porque no século 17, no despertar
do cartesianismo, o polígrafo d.
Francisco Manuel de Mello já
usava o verbo cifrar em direção
oposta -para designar algo
oculto. De-cifrar seria "desnumerar". Óbvios e indiscutíveis,
números acabaram escondidos
e herméticos.
O culto numerológico e os seus
verbos fulminantes são em
grande parte promovidos pelo
estilo jornalístico vigente. Mais
fácil reduzir tudo a um placar
de cifras do que decifrar e interpretar o sentido das novidades.
Já vi manchetes empregando
o velocíssimo verbo "arrancar"
para uma subida de dois pontos
em sondagem de opinião,
quando se sabe que a margem
de erro é normalmente de três
pontos para cima ou para baixo. Arrancada fictícia, trepidação imóvel.
Manchetes sobre o desempenho das bolsas servem-se de índices que não medem o quociente psicológico, de capital
importância num sistema mercurial de informações como o
atual.
Processo especulativo, imediatista, que descarta tendências e potencialidades. A crise
real é em grande parte uma crise virtual e isso de tal forma que
não se consegue distinguir o fato da reverberação, nem separar causa de efeito.
Incomodado com o dilema
mitológico consagrado em Wall
Street, onde o touro representa
a tendência para subir, e o urso,
a inclinação para a queda, o famoso financista Warren Buffet
sentenciou: "O touro ganha, o
urso ganha; apenas o burro perde" (na realidade disse "pig"
-porco).
Bolsas funcionam durante algumas horas, cinco dias por semana, mas o mercado jamais
fecha, nem para balanço. Suas
principais leis ainda não foram
revogadas e, como o segredo é a
alma do negócio, nem sequer
enunciadas. Denominadas como "bolsas de valores", negociam valores mobiliários, móveis. Por isso, voláteis.
Mas há um conjunto de valores intrínsecos que não despencam e não disparam. Não são
cotados, nem quotizáveis. Inteiriços e permanentes, balizam o
comportamento, dão as referências, servem de marcos. Não
cabem em etiquetas. Escapam
aos marqueteiros porque o
marketing, embora calcado em
números, é ilusório e aleatório.
Frequentemente inexato.
Exemplo dramático, logo contornado, foi o movimento dos
marqueteiros do PT, nos primeiros momentos da campanha eletrônica, quando tentaram substituir o vermelho revolucionário pelo branco sossegado. Estavam atrás de melhores
números ignorando valores,
compromissos.
Antes de maio de 98, quando
se mencionava o tigre da Indonésia, pensava-se no longevo
ditador Suharto. A globalização que o consagrou levou-o de
roldão e na ultima edição do
"New York Review of Books"
(13/8/98) admite-se que está em
curso um processo inexorável
de reformas democráticas e renascimento do país.
Cartaz da ultima edição da
revista "Veja" (sobre o pânico
das bolsas) é sugestivo: "A Rússia conseguiu o que queria, colocou o mundo no vermelho".
Rússia quer dizer Ieltsin, mas
será Ieltsin a Rússia? O último
estágio da crise russa começou
por causa de uma "barriga" da
CBS, anunciando a renúncia do
presidente.
Nas manchetes as bolsas despencaram e, para desmenti-las,
o homem fez a única coisa que
sabe fazer -demitiu sumariamente Anatoli Chubais, o negociador da dívida externa que já
fora seu preferido.
Bill Clinton foi à Rússia reforçar os ânimos visando à implementação das reformas estruturais em direção da economia
de mercado. O problema russo
não é conceitual ou ideológico,
é orgânico. A questão lá não é a
de um Estado máximo ou mínimo: não há Estado. Desmontou-se uma complicada estrutura construída ao longo de 70
anos de comunismo e, em seu
lugar, deixou-se um vazio.
Mikhail Gorbatchov, culto e
sofisticado, sabia que o processo de substituição deveria ser
lento, gradual e seguro. Ieltsin,
apoiado pelo Ocidente, especialmente a Alemanha, ávida
por novos triunfos e novos mercados depois da reunificação,
passou-lhe uma rasteira.
Fracassou porque não é estadista, é um boçal. Está contado
em livro, com detalhes preciosos, por Aleksandr Korzhakov,
agente da KGB, seu guarda-
costas durante 20 anos, espécie
de Rasputin afinal alijado do
poder num dos sucessivos golpes de mão nos corredores do
Kremlin.
Ieltsin ganhou as primeiras
páginas do mundo em agosto
de 1991, com a célebre fotografia na torre de um tanque exortando o povo contra os golpistas. Poucos prestaram atenção
ao detalhe: segurava um papel
no qual lia sua proclamação,
incapaz de improvisar um pensamento articulado naquele
momento decisivo.
Saído da mesma matriz daqueles memoráveis tipos e arquétipos que desde o fim do século passado povoam e influenciam a cultura ocidental, Boris
Nicolaievitch Ieltsin, é engenheiro-construtor de profissão.
Mas sua obra maior foi a demolição da mansão Ipatiev (onde
os Romanoff passaram os últimos dias antes do fuzilamento).
Algo me diz que esse instinto
de demolidor está fatalmente
enredado à inexorável compulsão russa para os desfechos trágicos. Os verbos das manchetes
e as cifras dos pregões são fáceis
de imaginar.
Nota: Virgílio Maia, poeta,
pesquisador e linguista de Fortaleza, sugere uma explicação
para o provérbio "Agosto, mês
do Desgosto", que, aparentemente, só existe em português:
a 4 de agosto de 1578 desaparecia em Alcácer-Quibir o rei d.
Sebastião, criando o "Desgosto-
Mor" da história lusitana.
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