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CARLOS HEITOR CONY
O funeral da emoção na mídia moderna
Reclamam quando Nelson
Rodrigues é citado, com ou
sem motivo. Como todo mundo,
sábios, ignorantes e mais ou menos, ele disse e escreveu muita
besteira. Mas, quando acertava
na mosca, era fulminante, letal,
insubstituível. Lembro-me dele
no início desta crônica -e como
não fazê-lo?
Nelson sempre reclamou da falta dos pontos de exclamação nos
títulos e textos dos jornais. No
tempo dele, os jornais gastavam
espaço e tinta com enormes pontos de exclamação, abolidos pelos
copidesques e pelos manuais de
redação que se seguiram.
Evidente que o problema não
era a exclamação em si, mas o estupor, o pasmo, a perplexidade, a
emoção que o sinal ortográfico
expressava. Varrendo o sentimento mais autêntico da condição humana (a emoção pura e
simples) para o lixo da história e
para baixo do tapete do bom gosto, a mídia pasteurizou-se, ficou
anódina (não gosto dessa palavra, mas vai lá), sem sal, chata como uma galocha aposentada no
fundo de um armário.
Quando Zola escreveu seu famoso libelo a favor do capitão
Dreyfus, mandou para a redação
do jornal ("L'Aurore") um texto
cujo título não dizia nada: ""Carta
ao M. Félix Faure, presidente da
República". O redator-chefe do
jornal era Clemenceau, que mais
tarde seria presidente do Conselho dos Ministros por duas vezes.
Riscou o título original, trocando-o por ""J'accuse!..", com ponto de
exclamação e tudo. Zola reclamou, mas Clemenceau alegou
que a carta terminava com numerosos parágrafos em que o romancista começava a frase com
""eu acuso". O título estava ali, dado pelo próprio Zola.
Esse é o exemplo definitivo do
jornal que, além de entrar na história, também faz história. Tenho
para mim que foi esse o maior
momento do jornalismo mundial
em todos os tempos, vivido por
dois gigantes.
Pulando do caso Dreyfus para o
caso do World Trade Center, que
está na ordem do dia, intrometo
entre os dois o desastre que destruiu o dirigível Hindenburg, no
dia 6 de maio de 1937, quando
pousava em Nova Jersey. Era o
maior aparelho voador da época,
orgulho do regime nazista. Um
Titanic dos ares, com fama de ser
também indestrutível.
Ao chegar em Lakehurst, a multidão esperava ver a maravilha
descer majestosamente e ser ancorada nas torres de amarração.
Uma centelha elétrica ou um ato
de sabotagem, e o formidável dirigível, na época a maior máquina construída pelo homem, incendiou-se, foi reduzido a um
montão de ferro retorcido e fumegante. Túmulo de dezenas de passageiros, formou dramaticamente, com seu cadáver calcinado,
um dos logotipos do século 20.
Locutores, fotógrafos e câmaras
cinematográficas registraram a
tragédia ao vivo. Era a primeira
vez que um fato do mundo moderno ficava documentado simultaneamente pelo rádio, pelo jornal e pelo cinema, que, sem a televisão e a internet, então inexistentes, constituíam a totalidade
da mídia da época.
Subproduto da tragédia que
emocionou o mundo, foi o relato
do locutor Herbert Morrison, que
cobria a chegada do Hindenburg
para a WLS de Chicago. Ele descrevia as operações de pouso, como qualquer outro locutor, mas,
quando o dirigível começou a pegar fogo, com passageiros atirando-se para a morte, ele esqueceu o
seu ofício, continuou descrevendo
o que via, mas chorando, imprecando contra o destino, meu
Deus, é inacreditável, como pode?
Ele está pegando fogo, é horrível,
os passageiros estão morrendo,
uma tragédia -a voz esganiçada
e cortada pelos soluços.
Foi um momento do jornalismo, faz parte da antologia da
profissão. Até hoje o pranto de
Morrison é citado quando se resenham os grandes momentos do
século que passou.
Corte rápido para 11 de setembro de 2001. As duas torres do
WTC são destruídas por um atentado terrorista. Plasticamente, a
tragédia é bem maior do que a do
Hindenburg. Politicamente, nem
se fala. Maior o número de vítimas, maior a cobertura da mídia,
já em escala mundial.
Não se ouviu nenhum grito de
horror por parte dos jornalistas
que cobriam a tragédia. Muito espanto, especulação demais, palpites desencontrados, mas nenhuma emoção especial. Se algum dos
profissionais chorasse diante dos
microfones abertos, fatalmente
seria demitido ao final do dia por
ter poluído a informação de interesse público com uma intromissão pessoal.
O jornalista de hoje tem de ser
isento, não deve expor-se. Seus
sentimentos pessoais não interessam a ninguém. Que ele seja esterilizado como um tubo de laboratório, neutro como um túmulo,
inerme como a barata esmagada
pelo chinelo dos fatos.
Daí que sempre gostei da velha
piada atribuída ao locutor português que estava cobrindo, hipoteticamente, a explosão da bomba
atômica em Hiroshima. Dentro
do possível, ele foi narrando os fatos com a isenção profissional recomendada pelo ofício. Descreveu
a bomba saindo do Enola Gay,
caindo silenciosamente sobre a cidade adormecida. De repente, ao
surgir o cogumelo de fogo que
nascia do chão assassinado, ele
usou todos os palavrões conhecidos e desconhecidos da língua em
que Camões pediu esmola.
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