São Paulo, sexta-feira, 05 de outubro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

O funeral da emoção na mídia moderna

Reclamam quando Nelson Rodrigues é citado, com ou sem motivo. Como todo mundo, sábios, ignorantes e mais ou menos, ele disse e escreveu muita besteira. Mas, quando acertava na mosca, era fulminante, letal, insubstituível. Lembro-me dele no início desta crônica -e como não fazê-lo?
Nelson sempre reclamou da falta dos pontos de exclamação nos títulos e textos dos jornais. No tempo dele, os jornais gastavam espaço e tinta com enormes pontos de exclamação, abolidos pelos copidesques e pelos manuais de redação que se seguiram.
Evidente que o problema não era a exclamação em si, mas o estupor, o pasmo, a perplexidade, a emoção que o sinal ortográfico expressava. Varrendo o sentimento mais autêntico da condição humana (a emoção pura e simples) para o lixo da história e para baixo do tapete do bom gosto, a mídia pasteurizou-se, ficou anódina (não gosto dessa palavra, mas vai lá), sem sal, chata como uma galocha aposentada no fundo de um armário.
Quando Zola escreveu seu famoso libelo a favor do capitão Dreyfus, mandou para a redação do jornal ("L'Aurore") um texto cujo título não dizia nada: ""Carta ao M. Félix Faure, presidente da República". O redator-chefe do jornal era Clemenceau, que mais tarde seria presidente do Conselho dos Ministros por duas vezes. Riscou o título original, trocando-o por ""J'accuse!..", com ponto de exclamação e tudo. Zola reclamou, mas Clemenceau alegou que a carta terminava com numerosos parágrafos em que o romancista começava a frase com ""eu acuso". O título estava ali, dado pelo próprio Zola.
Esse é o exemplo definitivo do jornal que, além de entrar na história, também faz história. Tenho para mim que foi esse o maior momento do jornalismo mundial em todos os tempos, vivido por dois gigantes.
Pulando do caso Dreyfus para o caso do World Trade Center, que está na ordem do dia, intrometo entre os dois o desastre que destruiu o dirigível Hindenburg, no dia 6 de maio de 1937, quando pousava em Nova Jersey. Era o maior aparelho voador da época, orgulho do regime nazista. Um Titanic dos ares, com fama de ser também indestrutível.
Ao chegar em Lakehurst, a multidão esperava ver a maravilha descer majestosamente e ser ancorada nas torres de amarração. Uma centelha elétrica ou um ato de sabotagem, e o formidável dirigível, na época a maior máquina construída pelo homem, incendiou-se, foi reduzido a um montão de ferro retorcido e fumegante. Túmulo de dezenas de passageiros, formou dramaticamente, com seu cadáver calcinado, um dos logotipos do século 20.
Locutores, fotógrafos e câmaras cinematográficas registraram a tragédia ao vivo. Era a primeira vez que um fato do mundo moderno ficava documentado simultaneamente pelo rádio, pelo jornal e pelo cinema, que, sem a televisão e a internet, então inexistentes, constituíam a totalidade da mídia da época.
Subproduto da tragédia que emocionou o mundo, foi o relato do locutor Herbert Morrison, que cobria a chegada do Hindenburg para a WLS de Chicago. Ele descrevia as operações de pouso, como qualquer outro locutor, mas, quando o dirigível começou a pegar fogo, com passageiros atirando-se para a morte, ele esqueceu o seu ofício, continuou descrevendo o que via, mas chorando, imprecando contra o destino, meu Deus, é inacreditável, como pode? Ele está pegando fogo, é horrível, os passageiros estão morrendo, uma tragédia -a voz esganiçada e cortada pelos soluços.
Foi um momento do jornalismo, faz parte da antologia da profissão. Até hoje o pranto de Morrison é citado quando se resenham os grandes momentos do século que passou.
Corte rápido para 11 de setembro de 2001. As duas torres do WTC são destruídas por um atentado terrorista. Plasticamente, a tragédia é bem maior do que a do Hindenburg. Politicamente, nem se fala. Maior o número de vítimas, maior a cobertura da mídia, já em escala mundial.
Não se ouviu nenhum grito de horror por parte dos jornalistas que cobriam a tragédia. Muito espanto, especulação demais, palpites desencontrados, mas nenhuma emoção especial. Se algum dos profissionais chorasse diante dos microfones abertos, fatalmente seria demitido ao final do dia por ter poluído a informação de interesse público com uma intromissão pessoal.
O jornalista de hoje tem de ser isento, não deve expor-se. Seus sentimentos pessoais não interessam a ninguém. Que ele seja esterilizado como um tubo de laboratório, neutro como um túmulo, inerme como a barata esmagada pelo chinelo dos fatos.
Daí que sempre gostei da velha piada atribuída ao locutor português que estava cobrindo, hipoteticamente, a explosão da bomba atômica em Hiroshima. Dentro do possível, ele foi narrando os fatos com a isenção profissional recomendada pelo ofício. Descreveu a bomba saindo do Enola Gay, caindo silenciosamente sobre a cidade adormecida. De repente, ao surgir o cogumelo de fogo que nascia do chão assassinado, ele usou todos os palavrões conhecidos e desconhecidos da língua em que Camões pediu esmola.



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