São Paulo, sábado, 05 de outubro de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"CONVERSAS COM CORTÁZAR"

Obra é guia para outros textos do escritor

Entrevistas iluminam os fantasmas do autor argentino

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Se Jorge Luis Borges foi o mais admirado dos escritores argentinos, Julio Cortázar (1914-84) foi certamente o mais amado, e "Conversas com Cortázar" ajuda a entender por quê.
Nas longas entrevistas concedidas ao jornalista uruguaio Ernesto González Bermejo, o autor de "Bestiário" põe em evidência todas as principais características que tornaram sua obra tão viva e afetivamente tão próxima de seus leitores: o prazer da invenção, o humor sofisticado, a aversão aos dogmas e formalidades, a concepção da literatura como jogo, a crença quase metafísica no poder transformador da linguagem.
O livro, lançado em espanhol em 1977, é um excelente guia para acompanhar a leitura dos livros de Cortázar, iluminando a gênese de muitos deles -como "O Jogo da Amarelinha", "62 - Modelo para Armar", "Octaedro" e "O Livro de Manuel"- e esboçando um estudo da complexa personalidade criadora do escritor.
Está ali, por exemplo, uma explanação detida da idéia cortazariana do fantástico como uma espécie de dimensão ainda pouco explorada da realidade cotidiana. Daí a diferença básica entre o fantástico de Cortázar e o de Borges, autor a quem admirava pela lição de rigor e precisão.
"Os geniais contos fantásticos de Borges, como "O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam" e muitos outros, apresentam um fantástico inteiramente dissociado do real. (...) O meu fantástico invadiu o cotidiano desde o princípio. Além disso, ele é o cotidiano", diz o entrevistado.
"Para mim, o fantástico é, simplesmente, a indicação súbita de que, à margem das leis aristotélicas e da nossa mente racional, existem mecanismos perfeitamente válidos, vigentes, que nosso cérebro lógico não capta, mas que em certos momentos irrompem e se fazem sentir."
O que Cortázar buscava, como escritor, era desenvolver uma certa porosidade que propiciasse o acesso a essa dimensão. Ele via em sua atividade literária um componente quase parapsicológico.
Essa tendência -o mais correto talvez fosse dizer vocação-, contudo, convivia em Cortázar com uma profunda consciência da forma, das exigências construtivas do fazer literário.
Leitor assíduo dos franceses, dos russos e dos anglo-saxões, combatia a herança verborrágica, untuosa, deixada pelos espanhóis nas letras latino-americanas.
"O estilo é uma certa tensão, e se chega a essa tensão através da redução do texto ao absolutamente necessário. Imagine a aranha e sua teia. Ela vai tirando franjas daqui e dali até que faz da teia um modelo de tensão. A má literatura está cheia de franjinhas. É literatura com franjas."
O fascinante em Cortázar é a maneira como essa aguda consciência crítica, alimentada por uma respeitável erudição, desbasta e dá forma a um jorro criativo quase milagroso, capaz de inventar, por exemplo, seres tão estranhos -e ao mesmo tempo tão palpáveis- quanto os "cronópios" e os "famas".
Em torno dessa equação central giram as paixões e idiossincrasias aparentemente tão díspares do escritor: a idéia do acaso, o interesse pelos arquétipos junguianos, a aproximação com a filosofia oriental (em particular o Vedanta e o Zen), o amor ao jazz, a crença nos vampiros e, "last but not least", a militância política de esquerda.
Tudo isso é exposto com muita verve e humor nessas conversas.


Conversas com Cortázar     
Autores: Julio Cortázar e Ernesto Gonzáles Bermejo
Tradutor: Luís Carlos Cabral
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 18 (132 págs.)




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