São Paulo, sábado, 05 de outubro de 2002

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DRAUZIO VARELLA

As infecções dos pobres e as alergias dos ricos

Criança pobre pega infecção, filho de rico sofre de alergia. Jamais me esqueci dessa lição que aprendi na faculdade com o professor Antranik Manissadjian, há mais de 30 anos. De lá para cá, uma série de publicações demonstrou que a observação empírica do experiente pediatra estava coberta de razão.
Alguns agentes infecciosos são capazes de provocar respostas imunológicas equivocadas que atacam os tecidos normais do próprio hospedeiro, causando doenças auto-imunes e alergias. Paradoxalmente, no entanto, as infecções podem também interagir com o sistema imunológico de forma harmoniosa, levando à supressão dos mecanismos celulares que conduzem à auto-imunidade.
Nos últimos 30 anos, ocorreu aumento significativo de patologias auto-imunes e alérgicas nos países industrializados. Entre os processos alérgicos cresceu o número de casos de asma, de rinite e de dermatites atópicas (alergias de pele); entre os auto-imunes aumentou a incidência de esclerose múltipla (doença que provoca déficit neurológico que conduz à fraqueza muscular progressiva), de diabetes do tipo 1 (que se instala preferencialmente na infância e na adolescência) e doença de Crohn (caracterizada por processo inflamatório que acomete a mucosa do intestino).
Os dados epidemiológicos demonstram que as doenças alérgicas e auto-imunes não se distribuem de forma homogênea pelos cinco continentes: existe um gradiente norte-sul. Alergias, esclerose múltipla, diabetes tipo 1 e doença de Crohn são muito mais frequentes na Europa industrializada e na América do Norte do que nos demais continentes.
Fatores genéticos podem ser invocados para explicar a existência do gradiente norte-sul. Em gêmeos idênticos, quando a doença se instala em um dos irmãos, o outro é acometido, em 25% dos casos, de esclerose múltipla, em 40% dos casos, de diabetes do tipo 1 e, em 75% dos casos, de asma. Para populações de indivíduos geneticamente diferentes, entretanto, a influência dos genes tem relevância menor: o meio exerce papel preponderante.
No Paquistão, a incidência de diabetes do tipo 1 entre crianças é dez vezes menor do que na Inglaterra, mas a diferença desaparece quando as crianças paquistanesas emigram para o Reino Unido. Em Israel, a esclerose múltipla é rara entre africanos e asiáticos que imigraram para o país e mais frequente entre os de origem européia. Os filhos nascidos em Israel desses imigrantes, no entanto, apresentam incidência idêntica da doença, independentemente da origem dos pais.
Fatores socioeconômicos podem explicar melhor a existência do gradiente norte-sul, porque diversos trabalhos comprovam menor incidência de doenças imunológicas em populações mais pobres. Um estudo realizado em 12 países europeus demonstrou que existe relação direta entre o número de casos de asma, diabetes do tipo 1 e esclerose múltipla e o Produto Nacional Bruto do país. Em algumas regiões da Inglaterra e da Irlanda, a queda da incidência dessas doenças está associada à indicadores socioeconômicos desfavoráveis como desemprego, morar em casa alugada e o maior número de habitantes por residência. Na Alemanha, há mais casos de asma entre os alemães ocidentais do que entre os orientais.
O conceito de que infecções de repetição na primeira infância protegem contra o aparecimento de quadros alérgicos e auto-imunes não é novo. Em 1966, U. Leibowitz sugeriu que o risco de desenvolver esclerose múltipla seria mais alto em pessoas que tivessem crescido em lares com higiene bem cuidada. Em 1989, D. Strachan verificou que, quanto maior o número de irmãos na mesma casa e mais episódios infecciosos tivessem ocorrido na primeira infância, menor o risco futuro de rinite alérgica.
Desde então, diversas pesquisas epidemiológicas demonstraram que, em comparação com os primogênitos e com os filhos únicos, crianças criadas em companhia de irmãos mais velhos ou aquelas que tenham frequentado creches durante o primeiro ano de vida apresentam menor risco de desenvolver diabetes do tipo 1 e dermatites alérgicas. Da mesma forma, o uso de antibióticos para tratar infecções durante os primeiros seis meses de vida aumenta a probabilidade de surgirem quadros asmáticos e outros processos alérgicos.
Acaba de ser publicado no "The New England Journal of Medicine" um artigo em que pesquisadores austríacos, suíços e alemães, trabalhando em conjunto, testaram a hipótese de que a prevalência mais baixa de doenças alérgicas entre habitantes da zona rural, comparada à dos moradores urbanos das mesmas regiões, estava ligada a algo mais do que à simples poluição do ar. Os resultados comprovaram que as crianças criadas em sítios ou fazendas tiveram de fato menos processos alérgicos do que as criadas nos agrupamentos urbanos vizinhos.
Passamos o século 20 lutando por saneamento básico e melhores condições de higiene doméstica. Descobrimos vacinas e as aplicamos em massa para prevenir doenças endêmicas. Desenvolvemos antibióticos eficazes para tratar as infecções que não puderam ser prevenidas. Com essas medidas, a humanidade experimentou um salto na expectativa de vida sem precedentes nos séculos anteriores.
Ironia extrema é ter agora de pesquisar métodos seguros para reproduzir de forma atenuada os processos infecciosos do passado com a finalidade de assegurar a formação de um sistema imunológico bem ajustado para as crianças que nascem nas cidades, em famílias pequenas, em casas limpas e que recebem assistência médica quando adoecem.



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