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DRAUZIO VARELLA
As infecções dos pobres e as alergias dos ricos
Criança pobre pega infecção, filho de rico sofre de
alergia. Jamais me esqueci dessa
lição que aprendi na faculdade
com o professor Antranik Manissadjian, há mais de 30 anos. De lá
para cá, uma série de publicações
demonstrou que a observação
empírica do experiente pediatra
estava coberta de razão.
Alguns agentes infecciosos são
capazes de provocar respostas
imunológicas equivocadas que
atacam os tecidos normais do
próprio hospedeiro, causando
doenças auto-imunes e alergias.
Paradoxalmente, no entanto, as
infecções podem também interagir com o sistema imunológico de
forma harmoniosa, levando à supressão dos mecanismos celulares
que conduzem à auto-imunidade.
Nos últimos 30 anos, ocorreu
aumento significativo de patologias auto-imunes e alérgicas nos
países industrializados. Entre os
processos alérgicos cresceu o número de casos de asma, de rinite e
de dermatites atópicas (alergias
de pele); entre os auto-imunes aumentou a incidência de esclerose
múltipla (doença que provoca déficit neurológico que conduz à
fraqueza muscular progressiva),
de diabetes do tipo 1 (que se instala preferencialmente na infância
e na adolescência) e doença de
Crohn (caracterizada por processo inflamatório que acomete a
mucosa do intestino).
Os dados epidemiológicos demonstram que as doenças alérgicas e auto-imunes não se distribuem de forma homogênea pelos
cinco continentes: existe um gradiente norte-sul. Alergias, esclerose múltipla, diabetes tipo 1 e
doença de Crohn são muito mais
frequentes na Europa industrializada e na América do Norte do
que nos demais continentes.
Fatores genéticos podem ser invocados para explicar a existência do gradiente norte-sul. Em gêmeos idênticos, quando a doença
se instala em um dos irmãos, o
outro é acometido, em 25% dos
casos, de esclerose múltipla, em
40% dos casos, de diabetes do tipo
1 e, em 75% dos casos, de asma.
Para populações de indivíduos
geneticamente diferentes, entretanto, a influência dos genes tem
relevância menor: o meio exerce
papel preponderante.
No Paquistão, a incidência de
diabetes do tipo 1 entre crianças é
dez vezes menor do que na Inglaterra, mas a diferença desaparece
quando as crianças paquistanesas emigram para o Reino Unido.
Em Israel, a esclerose múltipla é
rara entre africanos e asiáticos
que imigraram para o país e mais
frequente entre os de origem européia. Os filhos nascidos em Israel desses imigrantes, no entanto, apresentam incidência idêntica da doença, independentemente da origem dos pais.
Fatores socioeconômicos podem
explicar melhor a existência do
gradiente norte-sul, porque diversos trabalhos comprovam menor
incidência de doenças imunológicas em populações mais pobres.
Um estudo realizado em 12 países
europeus demonstrou que existe
relação direta entre o número de
casos de asma, diabetes do tipo 1 e
esclerose múltipla e o Produto
Nacional Bruto do país. Em algumas regiões da Inglaterra e da Irlanda, a queda da incidência dessas doenças está associada à indicadores socioeconômicos desfavoráveis como desemprego, morar
em casa alugada e o maior número de habitantes por residência.
Na Alemanha, há mais casos de
asma entre os alemães ocidentais
do que entre os orientais.
O conceito de que infecções de
repetição na primeira infância
protegem contra o aparecimento
de quadros alérgicos e auto-imunes não é novo. Em 1966, U. Leibowitz sugeriu que o risco de desenvolver esclerose múltipla seria
mais alto em pessoas que tivessem
crescido em lares com higiene
bem cuidada. Em 1989, D. Strachan verificou que, quanto maior
o número de irmãos na mesma
casa e mais episódios infecciosos
tivessem ocorrido na primeira infância, menor o risco futuro de rinite alérgica.
Desde então, diversas pesquisas
epidemiológicas demonstraram
que, em comparação com os primogênitos e com os filhos únicos,
crianças criadas em companhia
de irmãos mais velhos ou aquelas
que tenham frequentado creches
durante o primeiro ano de vida
apresentam menor risco de desenvolver diabetes do tipo 1 e dermatites alérgicas. Da mesma forma, o uso de antibióticos para
tratar infecções durante os primeiros seis meses de vida aumenta a probabilidade de surgirem
quadros asmáticos e outros processos alérgicos.
Acaba de ser publicado no "The
New England Journal of Medicine" um artigo em que pesquisadores austríacos, suíços e alemães,
trabalhando em conjunto, testaram a hipótese de que a prevalência mais baixa de doenças alérgicas entre habitantes da zona rural, comparada à dos moradores
urbanos das mesmas regiões, estava ligada a algo mais do que à
simples poluição do ar. Os resultados comprovaram que as crianças criadas em sítios ou fazendas
tiveram de fato menos processos
alérgicos do que as criadas nos
agrupamentos urbanos vizinhos.
Passamos o século 20 lutando
por saneamento básico e melhores condições de higiene doméstica. Descobrimos vacinas e as aplicamos em massa para prevenir
doenças endêmicas. Desenvolvemos antibióticos eficazes para
tratar as infecções que não puderam ser prevenidas. Com essas
medidas, a humanidade experimentou um salto na expectativa
de vida sem precedentes nos séculos anteriores.
Ironia extrema é ter agora de
pesquisar métodos seguros para
reproduzir de forma atenuada os
processos infecciosos do passado
com a finalidade de assegurar a
formação de um sistema imunológico bem ajustado para as
crianças que nascem nas cidades,
em famílias pequenas, em casas
limpas e que recebem assistência
médica quando adoecem.
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