|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Av. Faria Lima, Berlim Leste
Graças a uma nova lei da Prefeitura de São Paulo, logo viveremos felizes em Berlim Leste
MINHA PRIMEIRA viagem a
Berlim foi no começo dos
anos 70, com um grupo de
amigos militantes de esquerda.
Para quem vinha da Europa Ocidental, Berlim Leste era estranhamente monocromática. No fim do
dia, a débil iluminação urbana instaurava uma penumbra amarela e
opressiva: era a Viena de Orson Welles no "Terceiro Homem", sem o
charme do claro-escuro. Pensávamos: os "camaradas" não vão desperdiçar watts para dar à cidade um
ar de festa, precisam construir o socialismo e deixar a força para as fábricas. Não é?
Alexanderplatz, com a sua Fonte
da Amizade Internacional e o palito
da torre da TV, parecia-nos sinistra.
Mesma coisa com Unter den Linden, apesar de nossas lembranças literárias. Alguém comentou: "Se ao
menos houvesse letreiros luminosos e anúncios publicitários". Era
uma constatação envergonhada: afinal, aquela iluminação parcimoniosa e a "sobriedade" da paisagem urbana deviam ser um ato de acusação
contra a frivolidade do Ocidente. Ali,
o pessoal se dedicava a uma tarefa
séria e grande: tratava-se de construir uma sociedade em que cada
um pudesse cuidar não do que ele tinha ou não tinha, mas de sua "essência". Nós, "alienados", sentíamos
nostalgia da proliferação de outdoors e holofotes da Kurfürstendamm.
Voltamos para o Oeste no meio da
segunda noite, com uma sensação
de derrota, e ficamos passeando e
conversando ao redor da estação do
metrô Zoo, até o dia nascer. Era um
bom lugar para meditar sobre a leviandade do Oeste, onde nos sentíamos em casa, e a tristeza do Leste, do
qual acabávamos de fugir (como
muitos alemães, mas sem correr os
mesmos riscos). De um lado, uma
idéia e um projeto só. Do outro, uma
confusão de objetos e superfluidades. Descobrimos que, entre Alexanderplatz e Zoo, preferíamos Zoo,
com sua mistura de desejos de consumo e vidas perdidas.
Anos mais tarde, ao chegar ao Brasil pela primeira vez, a iluminação
duvidosa das ruas evocou, na minha
memória, a penumbra de Berlim
Leste. Com esta (grande) diferença:
a alegria que pipocava nas luminárias caóticas de barzinhos, armazéns
e propagandas vistosas, embora curiosamente "démodées". Aparte: a
escuridão das ruas não era sinal de
escassez, mas de menosprezo pelo
espaço público (as ruas eram escuras, mas as casas dos amigos que me
hospedavam brilhavam como árvores de Natal).
Pois bem, o prefeito e a Câmara
dos Vereadores de São Paulo acabam de aprovar uma lei para melhorar a paisagem urbana. A partir de
janeiro, sem mais nem menos, "fica
proibida, no âmbito do município de
São Paulo, a colocação de anúncio
publicitário nos imóveis públicos e
privados, edificados ou não". A
maioria dos comentaristas aplaude:
a ganância da iniciativa privada parará de desfigurar nossa cidade. Entendo, mas fico perplexo.
A Folha de quarta-feira retrasada publicou, em primeira página, a
fotografia de um trecho da avenida
Faria Lima em seu estado atual e
uma fotomontagem da prefeitura
que mostra o mesmo trecho assim
como será, uma vez a lei entrada
em vigor: é a Faria Lima de Berlim
Leste. Se a lei não instaurar apenas
um rápido intervalo para reinventar uma nova e melhor presença de
holofotes, letreiros e outdoors, viveremos em Berlim Leste, com a
desvantagem de não ter um sonho
(ou pesadelo) utópico para justificar a monocromia e a penumbra de
nossa cidade. Tudo bem, quando a
gente não agüentar mais, restará
passear pelos shopping centers,
que permanecerão como ilhas de
uma estética que não despreza o
caleidoscópio desordenado dos desejos que é nossa "essência", fútil,
mas (é sua vantagem) volúvel e
plástica.
Ninguém parece se preocupar
com a perda cultural que seria produzida pelo sumiço das propagandas. Somos uma sociedade de indivíduos. Não temos em comum nem
uma fé nem uma tradição coesa.
Compartilhamos dois repertórios:
o de nossos sonhos (as ficções, as
músicas etc.) e o de nossos desejos
desordenados, cujos caminhos coletivos aparecem, por exemplo, nas
mil seduções dos anúncios que decoram o espaço no qual vivemos
juntos.
Se você não acredita que esse segundo repertório possa ser uma
parte relevante de nossa cultura e
de nossa história comuns, faça
uma experiência simples: folheie
com amigos o maravilhoso "Almanaque dos anos 70", de Ana Maria
Bahiana (Ediouro).
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Liminar obriga RBD a pagar por direito autoral Índice
|