São Paulo, sexta-feira, 05 de outubro de 2007

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Crítica

Em "Tropa de Elite", Padilha transforma a platéia em algoz

Diretor subverte narrativa clássica para colocar espectador no banco dos réus

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Rios de tinta e quilos de bytes já foram gastos na defesa e acusação de "Tropa de Elite" desde que o filme se tornou fonte de alegria de camelôs país afora. Agora que os produtores adiantaram sua estréia, pode-se assistir à versão final, que de fato difere da existente nas cópias piratas.
A primeira impressão é a de um filme de ação muito bem executado, que segue cânones do gênero, conduzindo a platéia a torcer pelo protagonista por meio do sempre eficiente mecanismo de identificação. Sob essa perspectiva, o filme chegou a ser interpretado por Plínio Fraga, em artigo nesta Ilustrada no último dia 27, como "desumano e autoritário" e de conduzir à "legitimação da tortura". Em suma, "Tropa de Elite" recorreria à espetacularização da violência para satisfazer impulsos sanguinários da platéia, que vibra e aplaude.
Um interpretação menos emocional, contudo, exige certo recuo, que encontra um sólido ponto de partida na perspectiva oferecida pela revisão do documentário "Ônibus 174", trabalho anterior do diretor José Padilha.
Nele, ao reconstituir a trajetória do menino de rua Sandro do Nascimento, o diretor obtinha um justo resultado no que se refere à genealogia do crime, mas não só. Um dos mais interessantes aspectos daquele trabalho consistia em fazer ver como Sandro transformou-se em ator principal e encenador de um espetáculo.
Em "Tropa de Elite", Padilha retoma a idéia de espetáculo para desmontá-la diante dos nossos olhos, na medida em que o espectador é subtraído do papel de vítima e associado ao lugar do algoz.
Ao se transferir do documentário para o filme ficcional, pode-se apontar certas fragilidades e tiques do diretor, como o uso da câmera na mão e os cortes rápidos na edição histérica, recursos de um "realismo" codificado do cinema contemporâneo, de "Cidade de Deus" a "Supremacia Bourne".

Filme em três atos
Mas tais efeitos não comprometem a inteligente estrutura do relato de "Tropa de Elite" da maneira clássica como foi articulado. Em três atos, a trama investe, primeiro, na rede de cumplicidades crime-sociedade-polícia, depois, descreve o processo de constituição da mentalidade de extermínio dos integrantes do Bope e, finalmente, expõe de maneira explícita seus métodos de ação.
O recurso ao modo clássico serve para subverter os mecanismos de identificação e revelar à platéia de onde parte o desejo de vingança. Pois o fio condutor da trama é o personagem Nascimento, marido e pai de família carinhoso, indivíduo padrão de classe média e, ao mesmo tempo, executor frio de ações de tortura e matança.
A tese, se há uma no filme de Padilha, não é que os "burgueses" alimentam o tráfico por meio do consumo de drogas, mas que a brutalidade do Bope é a realização de nossos desejos de extermínio.
O plano final do filme, contudo, é que concentra sua maior ameaça: com um fuzil apontado para nossa cara, somos retirados da confortável posição de voyeurs e colocados na incômoda cadeira dos réus.


TROPA DE ELITE
Direção: José Padilha
Produção: Brasil, 2007
Com: Wagner Moura, Caio Junqueira, André Ramiro e Maria Ribeiro
Quando: em cartaz nos cines Bristol, Unibanco, Iguatemi e circuito
Avaliação: ótimo



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