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Crítica/"Propriedade Privada"
Filme belga faz belo e delicado registro das relações familiares
Diretor explora tensão afetiva entre gestos e olhares e vai além da palavra ao expor pontos de vista dos personagens
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Tudo, em "Propriedade
Privada", gira em torno
de uma casa. A casa onde Pascale (Isabelle Huppert)
mora com seus dois filhos gêmeos, Thierry e François. Por
sugestão de Jan, seu namorado,
ela planeja vender a casa para
abrir uma pousada em outro lugar. Aí começam a surgir as
contradições, seja com os filhos, seja com o ex-marido.
Estamos em algum lugar no
interior da Bélgica, país do diretor Joachim Lafosse. Uma aldeola por onde, se alguém passar, imaginará que é impossível
viver ali sem ser feliz.
Mas a infelicidade tem muito
pouco a ver com esses clichês
idílicos. Ela está nos detalhes,
nas pequenas diferenças que
separam dois irmãos gêmeos,
na tensão muito particular que
os membros de um antigo casal
manifestam quando voltam a
se encontrar etc.
Mal comparando, "Propriedade Privada" não deixa de
lembrar "A Guerra dos Roses",
de Danny DeVito. Neste último, é verdade, os conflitos
acontecem de maneira ruidosa,
enquanto no filme de Lafosse
eles são discretos como o correr de um pequeno rio. Mas
existem.
Essa proximidade talvez ajuda a compreender certas diferenças entre a escola americana e a francesa (ou francófone),
a que pertence Lafosse. Nesta
última, o que mais importa é
constatar a existência do mundo. A dramaticidade que existe
é colocada em surdina. Não importa, em "Propriedade Privada", constatar quem é bom ou
quem é mau na história, quem
tem culpa ou não pelos acontecimentos.
A sucessão de pequenas histórias que envolvem os personagens -da necessidade de obter dinheiro à destinação desse
dinheiro; os rancores eventuais
dos filhos em vista da separação dos pais; a proximidade e as
disputas entre os gêmeos etc.-
é que procura dar conta de sua
situação afetiva.
O que o sistema de Lafosse
tem de interessante é a capacidade de mostrar o ponto de vista de cada um dos personagens,
de tal modo que o espectador
compõe um quadro das afinidades e desentendimentos que ali
acontecem -conjunto a que,
justamente, não têm acesso os
personagens (como nós em
nossas vidas, no mais).
Com isso, um longo plano fixo em torno de uma mesa de
jantar, por exemplo, não nos informa apenas sobre o comportamento durante as refeições
como, sobretudo, introduz a relação entre a fala e as pausas, dá
conta de tensões que não raro
estão mais nos gestos e nos
olhares de cada um do que nas
palavras.
O bem-sucedido de "Propriedade Privada" passa, bem entendido, por Isabelle Huppert.
Passa, em particular, por atravessarmos mais ou menos hora
e meia sem nos perguntarmos
sobre sua atuação. É como se
ela não atuasse. É como se ela
fosse aquela mulher e estivesse
lá naquele momento. Este é um
atributo de poucas e admiráveis atrizes.
PROPRIEDADE PRIVADA
Direção: Joachim Lafosse
Produção: Bélgica, França, Luxemburgo, 2006
Com: Isabelle Huppert, Jérémie Renier, Yannick Renier
Onde: em cartaz nos cines Unibanco
Arteplex e Reserva Cultural
Avaliação: bom
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