São Paulo, Sexta-feira, 05 de Novembro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA
Filme busca entender solo comum das religiões

FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local

"Fé": o título deste filme já tem algo de desconcertante, é ao mesmo tempo lacônico e incisivo, vago e afirmativo demais. O documentário de Ricardo Dias só faz confirmar essa sensação.
O diretor age um pouco como um antropólogo estruturalista, investiga a diversidade religiosa do Brasil para buscar o ponto cego em que as diferenças se resolvem em semelhança. Seu tema é de fato a fé, a atitude religiosa, o substrato comum às diferentes religiões e correntes místicas.
Deixamos o filme com a sensação de que há um sistema de equivalências ou de homologias entre as religiões e, mais do que isso, com a sensação de que a cultura, com suas diferenças e arbitrariedades, afinal se dissolve numa espécie de ordem natural. É nesse sentido que Dias se assemelha mais a um antropólogo do que a um historiador. Parece lhe preocupar mais o que há de sincrônico nas religiões do que sua dispersão diacrônica, mais o universal do que suas evoluções particulares.
Trata-se, sem dúvida, de um dos grandes filmes brasileiros dos últimos anos. Mas não chega a ser um retrato de época, um documentário capaz de apreender, por exemplo, a novidade histórica que representa tanto a ascensão das igrejas neopentecostais quanto a sua contrapartida católica, a explosão da corrente carismática. O filme é anterior a Marcelo Rossi, mas também não há registro dos cultos de Edir Macedo, que impediu o diretor de filmá-los.
Isso o separa das obras-primas, como é por exemplo "Cabra Marcado Para Morrer" (1984), de Eduardo Coutinho. Ali, vamos encontrar na dispersão de uma família após o golpe de 64 e na reconstituição das vidas desencontradas dos filhos separados o sentido profundo do impacto do regime militar depois de 20 anos -história individual e coletiva se imbricam. "Fé" não dá esse passo.
Ricardo Dias vai do geral ao particular, das missas, procissões, cultos e romarias ao registro íntimo dos fiéis diante do sagrado. Há talvez no filme depoimentos demais e demasiadamente repetitivos, mas há também imagens belíssimas e passagens muito comoventes. As cenas de uma sessão espírita, da reação de familiares diante de uma suposta mensagem de um filho que morreu, são cortantes, de tirar o fôlego.
O ponto alto de "Fé", porém, são as imagens do Vale do Amanhecer, seita próxima de Brasília que mistura signos e procedimentos de todas as religiões, uma combinação indiscriminada do high-tech com o arcaico, de luzes neon com ritos africanos. Ali o delírio da fé tem algo de impostura kitsch, ali estamos próximos de uma imagem contemporânea e muito incômoda do Brasil.


Avaliação:   


Filme: Fé Diretor: Ricardo Dias Produção: Brasil, 1999 Quando: a partir de hoje, no Cinesesc eInterlar Aricanduva

Texto Anterior: Filmar com 'Fé'
Próximo Texto: Joyce Pascowitch
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.