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CINEMA
Chegam às livrarias do país "Orson Welles" e "O
Prazer dos Olhos", clássicos da literatura sobre a sétima arte
Bazin e Truffaut se complementam na crítica moderna
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
A história é conhecida:
François Truffaut (1932-1984) estava preso por deserção,
quando conheceu André Bazin
(1918-1958), que, bom pregador,
levava o cinema aos presidiários.
Bazin envolveu-se a tal ponto com
a questão que acabou resgatando
Truffaut da cadeia e se responsabilizando por ele.
Bazin, o principal teórico do cinema moderno, foi um pai em
mais de um sentido para Truffaut,
provavelmente o maior crítico de
todos os tempos -além de realizador de primeira grandeza.
Quis o acaso que, ao mesmo
tempo e pela mesma editora, saíssem publicados em português livros de Truffaut e Bazin, em tudo
e por tudo complementares.
O "Orson Welles" de Bazin tem
a marca de seu autor: a cada página, a cada parágrafo, triunfa uma
vontade explicativa, um desejo
profundo de fazer com que o cinema seja mais compreendido.
Orson Welles (1915-1985) é um
ótimo exemplo para que Bazin
exponha e explique detidamente
sua idéia de realismo cinematográfico, pois, não sendo Welles
um realista estrito -como Roberto Rossellini, para ficar com
outro paradigma da estética baziniana-, trabalhando em estúdios, usando e abusando da fantasia, permite ao ensaísta afastar
qualquer ilusão do leitor a respeito do seu conceito de realismo.
A questão é apresentada exemplarmente já no prefácio de André S. Labarthe, partindo de um
texto em que o próprio André Bazin qualifica o cinema clássico como "uma engrenagem", enquanto o moderno seria como as pedras dispostas ao longo de um rio:
elas permitem ao viajante que
passe até a outra margem, mas será preciso que as pule e, acrescenta Bazin, que molhe um pouco as
pernas.
O realismo moderno apresenta-se, portanto, como uma dificuldade e como revelação. A verdade
não é evidente, e a imagem não
pode ser algo fácil. Ao longo do livro, Bazin esquadrinha o método
do realizador de "Cidadão Kane",
desde o seu princípio teatral (o
plano-seqüência em tudo favorece o trabalho do ator) até a revolução que consistiu no uso sistemático da profundidade de campo.
Com isso, o foco ocupava toda a
cena: o protagonista e o antagonista, o primeiro plano e o plano
de fundo do cenário. Não era mais
o cineasta que impunha ao espectador aquilo que devia ver. Cabia
ao espectador escolher o que ver
no conjunto da imagem proposta.
Realismo
Quem viu "Cidadão Kane" entende o quanto esse novo método
se coaduna com a idéia de Welles
de "descontar" uma história. Chegamos ao fim sem saber quem foi
Charles Foster Kane. Ou antes:
convencidos de que é impossível
mostrar quem foi um homem.
Em poucas palavras: Welles combatia o autoritarismo implícito da
prática cinematográfica e oferecia
ao espectador a liberdade diante
da imagem. Esse é (em parte, pelo
menos) o conceito de realismo
que Bazin desenvolve, enquanto
estuda com paixão a biografia e os
filmes de Welles, até 1958.
Até 1958 porque essa é a data da
morte de Bazin. Quem completa a
história? Truffaut, naturalmente.
Muito justo, já que, em vida, foi o
discípulo que mais dores de cabeça deu ao mestre.
Basta lembrar, por exemplo, os
efeitos da publicação de "Uma
Certa Tendência do Cinema Francês", em 1957, no semanário
"Arts". Hoje o artigo é reconhecido como o manifesto que deu origem à nouvelle vague. Na época,
soou como um duro ataque ao cinema francês do dito realismo
psicológico, aos roteiristas Aurenche e Bost, a diretores poderosos como Henri-Georges Clouzot.
O texto é um dos pontos altos
do polemismo francês no século
passado, tanto pelo vigor das
idéias quanto por sua exposição, e
apenas ele já torna "O Prazer dos
Olhos" um livro obrigatório para
quem gosta de cinema (e de boa
escrita). Toda a seção "Um Pouco
de Polêmica Não Faz Mal a Ninguém" é como um complemento
desse texto admirável, em que
Truffaut desmonta, com sua escrita corrosiva, o academismo, a
falsidade das situações, a dialogação artificial e, sobretudo, a crença de que esse cinema de "qualidade francesa" poderia se opor ao
cinema americano.
À parte essa seção, no mais, estaremos às voltas com um Truffaut muito mais empenhado em
homenagear mestres, colegas,
atores do que em desenvolver
uma atividade propriamente crítica. O que não o impede, diga-se,
de fazer uma defesa exemplar de
"Le Diable Probablement".
Com freqüência, porém, nos
deparamos com o Truffaut irredutível de sempre, fazendo apologia de John Travolta, falando de
seu Antoine Doinel, dando adeus
a Françoise Dorleac. Truffaut podia defender o autor, mas nunca
teve medo do lado mundano do
cinema -pelo contrário, cultivava-o. Pode ter se tornado o "cineasta da França", o mais oficial
do mundo, no entanto nunca cedeu ao nacionalismo e ao combate fóbico ao cinema americano,
que amava incondicionalmente.
Se em "Orson Welles" Bazin
passeia exclusivamente pelo terreno das idéias que nortearam o
melhor do cinema desde a década
de 40, Truffaut faz da crítica, em
"O Prazer dos Olhos", um instrumento de compreensão dos múltiplos níveis da atividade cinematográfica, que é idéia e matéria, arte e indústria.
Truffaut talvez seja o último
grande otimista a acreditar na
conciliação possível entre essas
duas esferas, e é disso que seus
textos dão conta em grande medida. "O Prazer dos Olhos" é uma
série de textos capitais para quem
deseja compreender o que foi esse
sonho magnífico do cinema.
O Prazer dos Olhos - Escritos
sobre Cinema
Autor: François Truffaut
Tradução: André Telles
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 39,30 (352 págs.)
Orson Welles
Autor: André Bazin
Tradução: André Telles
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 29,50 (200 págs.)
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