São Paulo, sábado, 05 de novembro de 2005

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CINEMA

Chegam às livrarias do país "Orson Welles" e "O Prazer dos Olhos", clássicos da literatura sobre a sétima arte

Bazin e Truffaut se complementam na crítica moderna

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A história é conhecida: François Truffaut (1932-1984) estava preso por deserção, quando conheceu André Bazin (1918-1958), que, bom pregador, levava o cinema aos presidiários. Bazin envolveu-se a tal ponto com a questão que acabou resgatando Truffaut da cadeia e se responsabilizando por ele.
Bazin, o principal teórico do cinema moderno, foi um pai em mais de um sentido para Truffaut, provavelmente o maior crítico de todos os tempos -além de realizador de primeira grandeza.
Quis o acaso que, ao mesmo tempo e pela mesma editora, saíssem publicados em português livros de Truffaut e Bazin, em tudo e por tudo complementares.
O "Orson Welles" de Bazin tem a marca de seu autor: a cada página, a cada parágrafo, triunfa uma vontade explicativa, um desejo profundo de fazer com que o cinema seja mais compreendido.
Orson Welles (1915-1985) é um ótimo exemplo para que Bazin exponha e explique detidamente sua idéia de realismo cinematográfico, pois, não sendo Welles um realista estrito -como Roberto Rossellini, para ficar com outro paradigma da estética baziniana-, trabalhando em estúdios, usando e abusando da fantasia, permite ao ensaísta afastar qualquer ilusão do leitor a respeito do seu conceito de realismo.
A questão é apresentada exemplarmente já no prefácio de André S. Labarthe, partindo de um texto em que o próprio André Bazin qualifica o cinema clássico como "uma engrenagem", enquanto o moderno seria como as pedras dispostas ao longo de um rio: elas permitem ao viajante que passe até a outra margem, mas será preciso que as pule e, acrescenta Bazin, que molhe um pouco as pernas.
O realismo moderno apresenta-se, portanto, como uma dificuldade e como revelação. A verdade não é evidente, e a imagem não pode ser algo fácil. Ao longo do livro, Bazin esquadrinha o método do realizador de "Cidadão Kane", desde o seu princípio teatral (o plano-seqüência em tudo favorece o trabalho do ator) até a revolução que consistiu no uso sistemático da profundidade de campo. Com isso, o foco ocupava toda a cena: o protagonista e o antagonista, o primeiro plano e o plano de fundo do cenário. Não era mais o cineasta que impunha ao espectador aquilo que devia ver. Cabia ao espectador escolher o que ver no conjunto da imagem proposta.

Realismo
Quem viu "Cidadão Kane" entende o quanto esse novo método se coaduna com a idéia de Welles de "descontar" uma história. Chegamos ao fim sem saber quem foi Charles Foster Kane. Ou antes: convencidos de que é impossível mostrar quem foi um homem. Em poucas palavras: Welles combatia o autoritarismo implícito da prática cinematográfica e oferecia ao espectador a liberdade diante da imagem. Esse é (em parte, pelo menos) o conceito de realismo que Bazin desenvolve, enquanto estuda com paixão a biografia e os filmes de Welles, até 1958.
Até 1958 porque essa é a data da morte de Bazin. Quem completa a história? Truffaut, naturalmente. Muito justo, já que, em vida, foi o discípulo que mais dores de cabeça deu ao mestre.
Basta lembrar, por exemplo, os efeitos da publicação de "Uma Certa Tendência do Cinema Francês", em 1957, no semanário "Arts". Hoje o artigo é reconhecido como o manifesto que deu origem à nouvelle vague. Na época, soou como um duro ataque ao cinema francês do dito realismo psicológico, aos roteiristas Aurenche e Bost, a diretores poderosos como Henri-Georges Clouzot.
O texto é um dos pontos altos do polemismo francês no século passado, tanto pelo vigor das idéias quanto por sua exposição, e apenas ele já torna "O Prazer dos Olhos" um livro obrigatório para quem gosta de cinema (e de boa escrita). Toda a seção "Um Pouco de Polêmica Não Faz Mal a Ninguém" é como um complemento desse texto admirável, em que Truffaut desmonta, com sua escrita corrosiva, o academismo, a falsidade das situações, a dialogação artificial e, sobretudo, a crença de que esse cinema de "qualidade francesa" poderia se opor ao cinema americano.
À parte essa seção, no mais, estaremos às voltas com um Truffaut muito mais empenhado em homenagear mestres, colegas, atores do que em desenvolver uma atividade propriamente crítica. O que não o impede, diga-se, de fazer uma defesa exemplar de "Le Diable Probablement".
Com freqüência, porém, nos deparamos com o Truffaut irredutível de sempre, fazendo apologia de John Travolta, falando de seu Antoine Doinel, dando adeus a Françoise Dorleac. Truffaut podia defender o autor, mas nunca teve medo do lado mundano do cinema -pelo contrário, cultivava-o. Pode ter se tornado o "cineasta da França", o mais oficial do mundo, no entanto nunca cedeu ao nacionalismo e ao combate fóbico ao cinema americano, que amava incondicionalmente.
Se em "Orson Welles" Bazin passeia exclusivamente pelo terreno das idéias que nortearam o melhor do cinema desde a década de 40, Truffaut faz da crítica, em "O Prazer dos Olhos", um instrumento de compreensão dos múltiplos níveis da atividade cinematográfica, que é idéia e matéria, arte e indústria.
Truffaut talvez seja o último grande otimista a acreditar na conciliação possível entre essas duas esferas, e é disso que seus textos dão conta em grande medida. "O Prazer dos Olhos" é uma série de textos capitais para quem deseja compreender o que foi esse sonho magnífico do cinema.

O Prazer dos Olhos - Escritos sobre Cinema
    
Autor: François Truffaut
Tradução: André Telles
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 39,30 (352 págs.)

Orson Welles
     Autor: André Bazin
Tradução: André Telles
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 29,50 (200 págs.)


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