São Paulo, segunda-feira, 05 de novembro de 2007

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Comentário/cinema/"A Via Láctea"

Lina Chamie cria um céu de estrelas na selva escura

CARLOS AUGUSTO CALIL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aparentemente uma simples história de amor entre um homem maduro desencantado e uma moça pronta para conquistar o território afetivo, "A Via Láctea", de Lina Chamie, é um belo filme sobre a morte.
A narrativa é trabalhada em fragmentos e temporalidades, cuja habilidosa manipulação demonstra a enorme evolução da diretora desde seu primeiro filme, "Tônica Dominante" (2001). Outra característica marcante em "A Via Láctea" é a amorosa descoberta da cidade inóspita, em ângulos e locações improváveis. Ela se dá por impregnação poética. O trunfo de Lina se encontra na consciência da linguagem.
Versada em poesia e música, além do cinema, lê a poesia nas suas duas vertentes: a propriamente literária, de que faz uso com grande discernimento -são poderosas as referências a Dante, Drummond, Eluard e Mário Chamie-, e a visual. Até os créditos desse filme, a cargo de Carla Caffé, constituem uma obra à parte, de apurado rigor.
Lina procura a sua tonalidade no contraste entre a música dramática de Schubert e a ironia melancólica da infância triste de Erik Satie. O espectador se compraz na beleza inefável da dança das mãos, de um olhar compartilhado, de um verso vivido, de um acorde insuspeito, de um canto remoto da cidade.
A fragilidade humana, que se apega à manifestação de afeto, à promessa amorosa, não está a salvo da contingência e do acaso, da instabilidade fugaz de instantes de improvável equilíbrio. Quando ele se rompe, interroga-se o sentido da vida. É dele que fala o poeta maior, ao defrontar-se "no meio do caminho" da sua vida.
Como o poeta, Heitor (Marco Ricca) mergulha na "selva oscura" para encontrar-se consigo mesmo. A visita ao Inferno é a mais bem realizada seqüência do filme de Lina Chamie. A fotografia de Kátia Coelho, sempre cúmplice, aqui se supera na construção de uma imagem de dilaceramento antes interior que externo. E o sacrifício da cadelinha alude à inevitável queda, ao fim do sentimento inocente.
Com "A Via Láctea", Lina Chamie nos brinda com um filme ao mesmo tempo comovente e culto, sem afetação. O público bem o merecia.


CARLOS AUGUSTO CALIL é professor de cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e secretário municipal da Cultura de São Paulo.


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