São Paulo, quinta-feira, 05 de dezembro de 2002

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GASTRONOMIA

O perigo vermelho

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Depois que o Jeffrey Steingarten ("O Homem que Comeu de Tudo"; Companhia das Letras) fala sobre qualquer assunto, acaba de vez com a matéria. Perfeccionista de marca maior, ele vai lá, escarafuncha, exaure o que tem para saber, não sobra absolutamente nada para ninguém. Quando o entrevistei, perguntei quantos colaboradores tinha (imagino uns 15), mas ele sabiamente trocou de assunto todas as vezes. Logo tem muitos. E já falou em ketchup, mas pelo menos para alguma coisa serve a idade, falei antes dele, aqui na Folha mesmo.
E nunca é demais voltar ao assunto, porque continua polêmico. O ketchup é um perseguido, está na outra trincheira, afastado das comidas de prestígio. É a grande culpa americana, o pecado vermelho que se derrama sobre uma nação e ameaça contagiar outras.
É o pecado brega, vulgar e perverso. Come-se quando não se tem visitas. As batatas fritas e o ketchup são daqueles casamentos armados no céu -como melão e presunto ou morangos com chantilly- e cruciais na economia da indústria alimentar americana; sozinhos poderiam com facilidade declanchar uma guerra. Os psicanalistas americanos o colocam como uma metáfora de sangue, querem sugar tudo e mais os ossinhos, e os diretores de novela e de cinema também. Morre-se em acidentes de ketchup, o molho escorrendo pelo canto do lábio, as mães chorando o corpo e besuntando os peitos grandes de vermelho-sangue-ketchup, tragédias gregas à base do doce-azedo.
Na era Reagan, ele quis encher as lancheiras escolares com o molho vermelho, porque, para um pote dele, você precisa de 2,5 kg de tomates maduros. Logo é muito tomatoso e cheio de nutrientes, mas a grita foi geral. Queriam as criancinhas comendo tomate na salada. O que acontece também é que o tomate fresco é sexy, aguenta uma boa dentada, quase uma maçã do Eden ou do amor.
Reagan foi vencido, e as crianças americanas tiveram que se contentar com seu Heinz em casa. Como vingança, dobraram a dose. (Os nutricionistas com certeza estavam se batendo por causa do açúcar do molho; no fundo, deve estar o açúcar, e não uma implicância gratuita com o ketchup.)
É possível tentar defender o indigitado. Tem brasão, bandeira e origem. Chinês, malaio, indonésio, catchup, catsup ou ketchup, todos certos, em etimologias provadas, palavra genérica para molho salgado antigamente feito com peixe fermentado. Edith Wharton ("A Idade da Inocência"), em sua autobiografia, se lembra com saudade das empregadas de Nova York, vestidas ainda como escravas, com grandes turbantes coloridos na cabeça, fazendo uma esplêndida comida sazonal, e ketchup de ostra fazia parte.
Os perus eram cozidos nesse molho para lhes dar gosto, porque o ketchup é feito para dar sabor, e o de tomates era apenas uma variedade entre o de nozes, cogumelos, ameixas.
Uma vez fui a uma degustação de ketchups. Juízes sentados lado a lado em frente a um prato de vidro e a uma colher de osso. Entre as provas, para limpar a boca, uma bolacha cracker sem sal e uma garrafa de club soda. Os critérios para a escolha eram: a cor, que deve ser vermelho vivo; muito escuro denota má qualidade ou prazo vencido, e vermelho pálido, um mau tomate. O paladar deve ser equilibrado, o tomate sendo apenas um veículo para o sabor; não pode aparecer demais. Nenhum ingrediente pode sobrepujar o outro: açúcar, vinagre, pimenta, tudo no seu exato de doce-azedo. A consistência, que deve estar entre o líquido e o sólido, não pode escorrer da bolacha para o prato, nem se agarrar nela, viscoso.
E o retrogosto... Pode-se falar em retrogosto, como nos vinhos, a melhor safra foi a de 1983.
O Steingarten facilitou tudo nas suas experimentações. O critério dele é ketchup Heinz, e os pontos são dados para o melhor ou pior... comparado com o Heinz.
Ninguém mais se mete a fazer ketchup em casa, e não seria nada difícil, mas um dos fabricantes resolveu descobrir as raízes do molho e fez um ketchup segundo receitas antigas. Danou-se, ninguém queria, queriam o gosto do industrializado, item cult, como a Coca-Cola. E, se a família americana prefere o molho industrializado, quem somos nós, mães e avós exaustas, para dizer o contrário?
E, se quiserem confundir mais a cabeça sobre o significado profundo do tomate, a base última do ketchup, em todas as últimas quartas-feiras de agosto, milhares de pessoas se reúnem na cidade espanhola de Buñol, perto de Valência, para jogar tomates uns nos outros das 11h da manhã às 11h da noite. Chafurdam e nadam em mares de tomate. Essa festa acontece desde 1944. O repórter que fez as fotos mais sensacionais desse evento portentoso se pergunta: E para quê? Quem souber a resposta que se habilite.

ninahort@uol.com.br


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