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GASTRONOMIA
O perigo vermelho
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Depois que o Jeffrey Steingarten ("O Homem que Comeu de Tudo"; Companhia das
Letras) fala sobre qualquer assunto, acaba de vez com a matéria.
Perfeccionista de marca maior,
ele vai lá, escarafuncha, exaure o
que tem para saber, não sobra absolutamente nada para ninguém.
Quando o entrevistei, perguntei
quantos colaboradores tinha
(imagino uns 15), mas ele sabiamente trocou de assunto todas as
vezes. Logo tem muitos. E já falou
em ketchup, mas pelo menos para
alguma coisa serve a idade, falei
antes dele, aqui na Folha mesmo.
E nunca é demais voltar ao assunto, porque continua polêmico.
O ketchup é um perseguido, está
na outra trincheira, afastado das
comidas de prestígio. É a grande
culpa americana, o pecado vermelho que se derrama sobre uma
nação e ameaça contagiar outras.
É o pecado brega, vulgar e perverso. Come-se quando não se
tem visitas. As batatas fritas e o
ketchup são daqueles casamentos
armados no céu -como melão e
presunto ou morangos com chantilly- e cruciais na economia da
indústria alimentar americana;
sozinhos poderiam com facilidade declanchar uma guerra. Os psicanalistas americanos o colocam
como uma metáfora de sangue,
querem sugar tudo e mais os ossinhos, e os diretores de novela e de
cinema também. Morre-se em
acidentes de ketchup, o molho escorrendo pelo canto do lábio, as
mães chorando o corpo e besuntando os peitos grandes de vermelho-sangue-ketchup, tragédias
gregas à base do doce-azedo.
Na era Reagan, ele quis encher
as lancheiras escolares com o molho vermelho, porque, para um
pote dele, você precisa de 2,5 kg
de tomates maduros. Logo é muito tomatoso e cheio de nutrientes,
mas a grita foi geral. Queriam as
criancinhas comendo tomate na
salada. O que acontece também é
que o tomate fresco é sexy, aguenta uma boa dentada, quase uma
maçã do Eden ou do amor.
Reagan foi vencido, e as crianças americanas tiveram que se
contentar com seu Heinz em casa.
Como vingança, dobraram a dose. (Os nutricionistas com certeza
estavam se batendo por causa do
açúcar do molho; no fundo, deve
estar o açúcar, e não uma implicância gratuita com o ketchup.)
É possível tentar defender o indigitado. Tem brasão, bandeira e
origem. Chinês, malaio, indonésio, catchup, catsup ou ketchup,
todos certos, em etimologias provadas, palavra genérica para molho salgado antigamente feito
com peixe fermentado. Edith
Wharton ("A Idade da Inocência"), em sua autobiografia, se
lembra com saudade das empregadas de Nova York, vestidas ainda como escravas, com grandes
turbantes coloridos na cabeça, fazendo uma esplêndida comida sazonal, e ketchup de ostra fazia
parte.
Os perus eram cozidos nesse
molho para lhes dar gosto, porque o ketchup é feito para dar sabor, e o de tomates era apenas
uma variedade entre o de nozes,
cogumelos, ameixas.
Uma vez fui a uma degustação
de ketchups. Juízes sentados lado
a lado em frente a um prato de vidro e a uma colher de osso. Entre
as provas, para limpar a boca,
uma bolacha cracker sem sal e
uma garrafa de club soda. Os critérios para a escolha eram: a cor,
que deve ser vermelho vivo; muito escuro denota má qualidade ou
prazo vencido, e vermelho pálido,
um mau tomate. O paladar deve
ser equilibrado, o tomate sendo
apenas um veículo para o sabor;
não pode aparecer demais. Nenhum ingrediente pode sobrepujar o outro: açúcar, vinagre, pimenta, tudo no seu exato de doce-azedo. A consistência, que deve
estar entre o líquido e o sólido,
não pode escorrer da bolacha para o prato, nem se agarrar nela,
viscoso.
E o retrogosto... Pode-se falar
em retrogosto, como nos vinhos,
a melhor safra foi a de 1983.
O Steingarten facilitou tudo nas
suas experimentações. O critério
dele é ketchup Heinz, e os pontos
são dados para o melhor ou pior...
comparado com o Heinz.
Ninguém mais se mete a fazer
ketchup em casa, e não seria nada
difícil, mas um dos fabricantes resolveu descobrir as raízes do molho e fez um ketchup segundo receitas antigas. Danou-se, ninguém queria, queriam o gosto do
industrializado, item cult, como a
Coca-Cola. E, se a família americana prefere o molho industrializado, quem somos nós, mães e
avós exaustas, para dizer o contrário?
E, se quiserem confundir mais a
cabeça sobre o significado profundo do tomate, a base última do
ketchup, em todas as últimas
quartas-feiras de agosto, milhares
de pessoas se reúnem na cidade
espanhola de Buñol, perto de Valência, para jogar tomates uns nos
outros das 11h da manhã às 11h da
noite. Chafurdam e nadam em
mares de tomate. Essa festa acontece desde 1944. O repórter que
fez as fotos mais sensacionais desse evento portentoso se pergunta:
E para quê? Quem souber a resposta que se habilite.
ninahort@uol.com.br
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