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Crítica/"Clarice,"
Obra sobre Lispector não é biografia, mas ensaio biográfico
Benjamin Moser se afasta da narrativa factual e faz radiografia da alma da autora
RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
"Clarice,", o livro do
americano Benjamin Moser sobre
Clarice Lispector (1920-1977),
está sendo apresentado por sua
editora como "uma biografia
como você nunca viu". E não
viu mesmo porque, tecnicamente, "Clarice," não é uma
biografia.
Ou, pelo menos, não se enquadra nos parâmetros que poderiam defini-la como uma história ou descrição da vida de
um personagem, tanto nas suas
grandes linhas como nos detalhes mais significantes, contra
um pano de fundo de cenário e
época. Esse personagem não é
um ectoplasma, mas um ser ativo, material, que faz coisas concretas, em casa, na rua ou no escritório, e vive cercado de pessoas tão ativas e materiais
quanto ele. Ao biógrafo compete ouvir o máximo de fontes para levantar os fatos de sua vida e
dispô-los numa narrativa lógica, abrangente e o mais próximo possível da verdade.
No decorrer das 648 páginas
do livro de Moser, Clarice Lispector não dá um beijo, não
troca uma lâmpada, não frita
um ovo. Às vezes, escreve um livro. É como se sua vida fosse toda voltada para dentro, e o biógrafo só se dispusesse a enxergá-la por meio de uma radiografia. E, no entanto, sabemos
que a vida de Clarice foi cheia
de peripécias.
Apenas pelo fato de ter nascido de uma família judia, na
Ucrânia, logo depois da Primeira Guerra, Clarice já estaria
condenada a elas. Sua mãe foi
estuprada pelos russos num
pogrom; o pai, arruinado; o avô,
assassinado. Fugindo à miséria
e a mais pogroms, os Lispector
vieram dar no Brasil, onde já tinham parentes, em 1922, trazendo as três filhas (Clarice, a
caçula, com 1 ano e meio) -primeiro, Maceió; depois, Recife;
finalmente, o Rio.
Começou a escrever muito
cedo, casou-se com um diplomata, passou 15 anos no exterior e, separada do marido, voltou com os dois filhos para o
Rio, onde, a duras penas, consolidou sua obra literária. Siderou um sem número de homens pela inteligência e pela
beleza, mas teve uma vida amorosa das mais pobres.
Escapou
de um incêndio em seu apartamento, em que só seu rosto foi
poupado das queimaduras. No
fim, reduzida a uma acompanhante, morreu de câncer, aos
57 anos. Esses fatos estão no livro vagos, dispersos, sem paixão, como amostras de sangue
numa lâmina de laboratório.
"Fatos e pormenores me
aborrecem", Clarice costumava
dizer. Coerente com a biografada, Moser afastou qualquer
possibilidade de narrativa física, factual na verdade, a espinha de qualquer biografia. É
uma opção respeitável.
Pena
que, com isso, o leitor às vezes
se perca no livro, sem saber onde ou quando está se passando
a ação, a pouca ação que ele se
permite descrever.
Como o autor não se obriga a
narrar os fatos, o leitor é surpreendido com informações
que parecem cair das nuvens.
De repente, por exemplo, Clarice se vê direto no nono mês de
gravidez. Muito depois, sem
aviso prévio, está se separando
do marido. E, a folhas tantas, de
supetão, descobrimos que tem
um longo histórico psiquiátrico
e é, há anos, pesada dependente
de soníferos e antidepressivos.
O marido, por sinal, é uma sombra -não se consegue visualizá-lo, nem entender seu papel
na vida de Clarice.
Quanto aos comprimidos de
venda "controlada", que ela tomava às mancheias, em nenhum momento Moser suspeita que pudessem ser a causa das
ansiedades, angústias e insônias que, no fim, tornaram Clarice quase insuportável para os
amigos e para si mesma. Nem
poderia suspeitar: seu "approach" ao íntimo do personagem é decididamente psicanalítico -e, se este livro é uma
biografia, sê-lo-á apenas da alma da escritora.
Na verdade, "Clarice," pertence a outro gênero, paralelo à
biografia e perfeitamente válido: o ensaio biográfico -e como tal deve ser lido. No ensaio
biográfico, o autor tem liberdade para comentar a trajetória
do biografado, explorar sua cabeça, ignorar o que lhe parece
supérfluo e, sendo o personagem um escritor, valer-se de citações do próprio e permitir-se
toda sorte de interpretações,
inferências e aproximações.
É o
que Moser faz, quase sempre
esbanjando inteligência.
A identidade judaica de Clarice; sua consciência de ser
uma esfinge, um "enigma"; sua
natureza animal (que ela tanto
prezava); a busca de um Deus
"neutro", inumano, e do significado oculto das palavras
-grandes temas claricianos
que Moser analisa com brilho,
dialogando a cada passo com
trechos dos romances, contos e
crônicas da escritora-, tudo
serve para iluminar a obra de
Clarice Lispector. E é isso que
separa os ensaios biográficos
das biografias: aqueles iluminam a obra; estas, a vida.
CLARICE,
Autor: Benjamin Moser
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 79 (648 págs.)
Avaliação: bom
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