São Paulo, sábado, 05 de dezembro de 2009

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Crítica/"Clarice,"

Obra sobre Lispector não é biografia, mas ensaio biográfico

Benjamin Moser se afasta da narrativa factual e faz radiografia da alma da autora

RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

"Clarice,", o livro do americano Benjamin Moser sobre Clarice Lispector (1920-1977), está sendo apresentado por sua editora como "uma biografia como você nunca viu". E não viu mesmo porque, tecnicamente, "Clarice," não é uma biografia.
Ou, pelo menos, não se enquadra nos parâmetros que poderiam defini-la como uma história ou descrição da vida de um personagem, tanto nas suas grandes linhas como nos detalhes mais significantes, contra um pano de fundo de cenário e época. Esse personagem não é um ectoplasma, mas um ser ativo, material, que faz coisas concretas, em casa, na rua ou no escritório, e vive cercado de pessoas tão ativas e materiais quanto ele. Ao biógrafo compete ouvir o máximo de fontes para levantar os fatos de sua vida e dispô-los numa narrativa lógica, abrangente e o mais próximo possível da verdade.
No decorrer das 648 páginas do livro de Moser, Clarice Lispector não dá um beijo, não troca uma lâmpada, não frita um ovo. Às vezes, escreve um livro. É como se sua vida fosse toda voltada para dentro, e o biógrafo só se dispusesse a enxergá-la por meio de uma radiografia. E, no entanto, sabemos que a vida de Clarice foi cheia de peripécias.
Apenas pelo fato de ter nascido de uma família judia, na Ucrânia, logo depois da Primeira Guerra, Clarice já estaria condenada a elas. Sua mãe foi estuprada pelos russos num pogrom; o pai, arruinado; o avô, assassinado. Fugindo à miséria e a mais pogroms, os Lispector vieram dar no Brasil, onde já tinham parentes, em 1922, trazendo as três filhas (Clarice, a caçula, com 1 ano e meio) -primeiro, Maceió; depois, Recife; finalmente, o Rio.
Começou a escrever muito cedo, casou-se com um diplomata, passou 15 anos no exterior e, separada do marido, voltou com os dois filhos para o Rio, onde, a duras penas, consolidou sua obra literária. Siderou um sem número de homens pela inteligência e pela beleza, mas teve uma vida amorosa das mais pobres.
Escapou de um incêndio em seu apartamento, em que só seu rosto foi poupado das queimaduras. No fim, reduzida a uma acompanhante, morreu de câncer, aos 57 anos. Esses fatos estão no livro vagos, dispersos, sem paixão, como amostras de sangue numa lâmina de laboratório.
"Fatos e pormenores me aborrecem", Clarice costumava dizer. Coerente com a biografada, Moser afastou qualquer possibilidade de narrativa física, factual na verdade, a espinha de qualquer biografia. É uma opção respeitável.
Pena que, com isso, o leitor às vezes se perca no livro, sem saber onde ou quando está se passando a ação, a pouca ação que ele se permite descrever.
Como o autor não se obriga a narrar os fatos, o leitor é surpreendido com informações que parecem cair das nuvens.
De repente, por exemplo, Clarice se vê direto no nono mês de gravidez. Muito depois, sem aviso prévio, está se separando do marido. E, a folhas tantas, de supetão, descobrimos que tem um longo histórico psiquiátrico e é, há anos, pesada dependente de soníferos e antidepressivos.
O marido, por sinal, é uma sombra -não se consegue visualizá-lo, nem entender seu papel na vida de Clarice. Quanto aos comprimidos de venda "controlada", que ela tomava às mancheias, em nenhum momento Moser suspeita que pudessem ser a causa das ansiedades, angústias e insônias que, no fim, tornaram Clarice quase insuportável para os amigos e para si mesma. Nem poderia suspeitar: seu "approach" ao íntimo do personagem é decididamente psicanalítico -e, se este livro é uma biografia, sê-lo-á apenas da alma da escritora.
Na verdade, "Clarice," pertence a outro gênero, paralelo à biografia e perfeitamente válido: o ensaio biográfico -e como tal deve ser lido. No ensaio biográfico, o autor tem liberdade para comentar a trajetória do biografado, explorar sua cabeça, ignorar o que lhe parece supérfluo e, sendo o personagem um escritor, valer-se de citações do próprio e permitir-se toda sorte de interpretações, inferências e aproximações.
É o que Moser faz, quase sempre esbanjando inteligência. A identidade judaica de Clarice; sua consciência de ser uma esfinge, um "enigma"; sua natureza animal (que ela tanto prezava); a busca de um Deus "neutro", inumano, e do significado oculto das palavras -grandes temas claricianos que Moser analisa com brilho, dialogando a cada passo com trechos dos romances, contos e crônicas da escritora-, tudo serve para iluminar a obra de Clarice Lispector. E é isso que separa os ensaios biográficos das biografias: aqueles iluminam a obra; estas, a vida.


CLARICE,

Autor: Benjamin Moser
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 79 (648 págs.)
Avaliação: bom




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