São Paulo, Quinta-feira, 06 de Janeiro de 2000


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Bem-vindo ao "fundo do mundo"


Daniel Guimarães/Folha Imagem
Ferréz, que escreveu sobre o Capão Redondo, em rua do distrito



Desempregado do Capão Redondo escreve romance baseado em histórias verdadeiras de um dos bairros mais violentos de SP; livro, sem editora, está pronto, mas autor muda trechos quando algum personagem morre na vida real


IVAN FINOTTI
da Reportagem Local

"Universo. Sistema Solar. Planeta Terra. América do Sul. Brasil. São Paulo. Zona Sul. Santo Amaro. Capão Redondo. Bem-vindo ao fundo do mundo."
Quem dá as boas-vindas é Reginaldo Ferreira da Silva, o Ferréz, um desempregado de 24 anos, morador do distrito do Capão Redondo e que acaba de concluir "Capão Pecado", um romance baseado nas histórias reais que viveu e viu.
O livro é violento, traz gírias só conhecidas na periferia e seu português é bem distante do culto. "Capão Pecado" traz uma escrita rápida, espontânea, crua e seca. Por isso, pode ser considerado um exemplo de literatura oral, narrativa que incorpora elementos do discurso falado.
Mas você não vai encontrá-lo nas livrarias, pelo menos por enquanto. Talvez nunca. É que, apesar de tê-lo concluído, Ferréz não tem idéia se alguma editora vai se interessar pelo livro.
"É preciso muita força de vontade para dar certo no bem", diz Ferréz, que estudou até o terceiro colegial e mora há 21 anos no Capão, um dos três bairros do chamado "triângulo da morte" pelas páginas policias dos jornais (os outros são Jardim Ângela e Parque Santo Antônio).
"Capão Pecado" é a história de Rael, um garoto que quer ser escritor e se apaixona pela namorada do amigo. Contraria, assim, as leis da favela em que vive. Ao mesmo tempo, diversos personagens acabam se envolvendo com drogas, roubos, assaltos etc.
"Ninguém é bom nem mau. São pessoas tentando sobreviver. Tem gente que prefere fazer correria a se matar por um salário mínimo."
Ferréz mora numa favela do Capão, perto da travessa Santiago, numa rua que tem dois nomes: a placa diz um, mas os moradores garantem que é outro.
Não tem telefone, mas tem computador, no qual escreveu "Capão Pecado". Tem, não, tinha. "Vendi o computador para poder fazer alguns exemplares do livro na impressora. Tinta, papel e encadernação custam mais caro do que posso pagar."
Para revisar o texto, Ferréz apelou para a escola pública perto de sua casa. "O professor de português corrigiu", diz.

Morte real, vida ficcional
Atualmente, o escritor faz mudanças no livro usando o notebook de seu amigo Aice, cujo nome é uma sigla de Ação Intelectual Conceituada na Esperteza.
Mudanças são necessárias periodicamente: "Meu amigo Marcos Roberto de Almeida aparece no livro como o personagem Marquinhos. Na história, ele morria. Só que ele acabou morrendo na vida real, assassinado por um assaltante. Agora, vou deixar ele vivo no livro".
Além disso, quando Ferréz percebe que algum personagem ficou facilmente reconhecível, dá uma disfarçada. "Tem gente que não quer aparecer. Dizem que estou usando a imagem do bairro, mas não vou ficar rico vendendo livro. Se, com o livro, eu puder convencer algum garoto que vale a pena batalhar sem atrapalhar a vida de ninguém está valendo."
Uma atração em "Capão Pecado" é a apresentação dos capítulos feita por membros de grupos de rap da região. Mano Brown, dos Racionais MC's, é um dos que dá sua visão particular do distrito.
São cerca de 130 páginas, narradas em três linguagens distintas. A primeira é a narração em terceira pessoa, que sustenta a história.
Outra é quando os personagens abrem a boca. É a fala da periferia, recheada de gírias. "Quando um pobre tem uma dificuldade com palavra, não acha dicionário na favela. Quero que os boys sintam o mesmo. Não vai ter glossário, não. Se o cara não trinca, não vai entender mesmo", diz o autor.
Por fim, há os momentos em que o personagem Rael -que quer ser escritor- "escreve" em sua cabeça os fatos que acaba de presenciar. Nesses trechos, Ferréz se torna mais rebuscado, usa palavras mais raras, faz prosa poética e rimas.
Aprendeu tudo isso lendo Fernando Pessoa, Drummond, Herman Hesse e histórias em quadrinhos -"tenho mais de mil"- do Batman, Justiceiro e Sandman.
Para os livros, tinha que ir à biblioteca mais próxima, a Presidente Kennedy, em Santo Amaro. A distância é de dois ônibus na ida e outros dois na volta.
Foi lá que Ferréz lançou seu primeiro livrinho, independente, de poesias, chamado "Fortaleza da Desilusão".
"Coloquei muita palavra complicada nesse livro de poesias. Palavras que eu gosto, que vejo nos livros. Ninguém entendeu. Pior é que, no dia do lançamento, choveu muito. Caiu uma árvore em frente à biblioteca e acabou a luz. Depois, alagou tudo."
"Agora já não vou mais na Kennedy. Compro livro em sebo, baratinho, três reais, mais barato que ir para a biblioteca."


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