São Paulo, terça-feira, 06 de janeiro de 2004

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Dramaturgo Marcos Barbosa tem duas peças no Royal Court Theatre

Um cearense na corte

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Cena de "Braseiro', de Marcos Barbosa, encenada na Mostra de Dramaturgia Contemporânea do Sesi



Os textos "Quase Nada" e "À Mesa" serão montados pela diretora Roxana Silbert e elenco de Londres


VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL A SALVADOR

Silêncios. Secos ou longos, não raras vezes desconfortantes, eles entremeiam boa parte das falas dos personagens. Provocam muito barulho por nada, violência plasmada em dinheiro, sexo, honra, medo.
Em seus dramas para teatro, o cearense Marcos Barbosa não deixa cair o pano sem um cadáver. Não é rendição óbvia aos desígnios da literatura policial.
Antes, interessam-lhe as tênues e tensas linhas do subtexto da violência que explode em comunidades urbanas ou rurais, ontem como hoje, guindando homens e mulheres, vítimas e geradores.
São relacionamentos sociais tortos como os de "Quase Nada" e "À Mesa". Na primeira peça, um casal de classe média assassina uma criança em um farol e finge que não foi com ele. Na segunda, o tempo não cicatriza um caso de pedofilia que atravessa uma geração de meninos.
"Quase Nada" (2002) e "À Mesa" (que recebe os últimos retoques) serão montadas no mês que vem numa das salas do Royal Court Theatre, na Inglaterra.
O mais tradicional teatro europeu de fomento à dramaturgia contemporânea (fundado em 1870, mas voltado para novos autores desde 1956) escolheu produzir os textos de Barbosa, com tradução, elenco e direção de artistas de Londres.
Uma façanha não só para o autor, mas para a dramaturgia brasileira que recuperou fôlego a partir do final dos anos 90 e alargou horizontes que muitos fixavam sobretudo em Nelson Rodrigues (1912-80) e Plínio Marcos (1935-99), ícones do moderno teatro no país.
Barbosa embarcou no último sábado para Londres, onde vai acompanhar os ensaios a cargo da diretora Roxana Silbert (leia ao lado). O autor tem 26 anos. Nasceu em Fortaleza. Mora atualmente em Salvador, onde dá sequência aos estudos.
Primogênito de sete irmãos, filho de um médico e de uma bancária aposentada, formou-se em engenharia civil. Cursou parte da faculdade na Alemanha. Trabalhou em química ambiental.
Apesar da bagagem, ele desembestou para a dramaturgia. E sem lastro familiar. Ninguém em casa dava para a escrita. Cometera poemas adolescentes, tentara escrever diálogos, mas só engrenou de vez em 1996, no curso de dramaturgia do Instituto Dragão do Mar de Arte, no Ceará.
"Sou um dramaturgo de ensaio, não aprendi como Plínio Marcos, no circo, ou por meio de extração divina. Tive aula", afirma o admirador confesso do autor de "Dois Perdidos Numa Noite Suja" (67).
O primeiro texto daquela safra foi "Tititi Popopó" (1997), um raro infantil de sua lavra, cuja montagem diz não ter assistido por motivo de viagem. Autocrítico à beça, coloca-o na gaveta dos experimentais, esboços de criações que não conquistaram plenamente sua devoção.
A primeira peça de responsa foi "Braseiro" (1999), conclusão do curso de dramaturgia no Dragão do Mar, sob orientação de Cleise Furtado Mendes (no mesmo instituto, conheceu e trocou idéias com os dramaturgos Luís Alberto de Abreu, José Eduardo Vendramini e Antônio Mercado).
Em 2002, a peça foi vertida para o inglês e lida no evento New Plays from Brazil, no Royal Court. No final do ano passado, "Braseiro" estava entre as seis peças da 2ª Mostra de Dramaturgia Contemporânea, idealizada pelo grupo Teatro Promíscuo.
Também em meados de 2003, uma dobradinha do Sesi paulista com o Royal Court levou ao palco um texto nacional e um britânico, respectivamente "Quase Nada" e "Distante", da veterana Caryl Churchill, ambos dirigidos por Roberto Lage.
Foi quando o nome de Barbosa começou a ser conhecido no chamado eixo Rio-São Paulo.
É com essa demanda que ele deixa para trás o verão cearense, onde visitou a família para as festas de fim de ano, e ruma para o inverno londrino.
"O fato de ser montado em Londres ou São Paulo é tão importante quanto ser montado em Salvador ou Nova Olinda, cidade do interior cearense que apresentou há pouco um dos meus textos que renegava, "A Lenda do Amor Perfeito de Yolanda e Bode Yoyô". No fim das contas, tem a diferença significativa do cachê, mas a briga com a tela em branco é a mesma."
Outras características da pequena e consistente obra de Barbosa (oito peças "montáveis") são as frases curtas e o despojamento nas rubricas; indicações de cenário, por exemplo. "Eu acho que escrevo para o teatro com a simplicidade do rádio. Minhas peças são para serem ouvidas. Não há muitas imagens a trabalhar."
Seus personagens estão metidos em espaços tão claustrofóbicos quanto a atmosfera dos diálogos.
Se dependesse de Barbosa, "Quase Nada" ou "À Mesa" não seriam necessariamente as peças que escolheria para serem montadas pelo Royal Court.
O voto iria para "Auto de Angicos", escrita sob encomenda para um recorte de Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, e Maria Déa, a Maria Bonita. A peça flagra os personagens na hora que antecede o assassinato dos dois pelos soldados na madrugada de 28 de julho de 1938, numa fazenda cravada entre Alagoas e Sergipe. Foi encenada por Elisa Mendes em Salvador, em 2003.
A perspectiva histórica em "Auto de Angicos" ecoa ainda em "Curral Grande", peça-tese do mestrado em artes cênicas que Barbosa concluiu na Universidade Federal da Bahia em dezembro passado, baseada na prisão de flagelados da seca de 1932, a mando do governo do Ceará, que criou sete campos de concentração.
Peças históricas, diz Barbosa, tendem a ser preteridas, como muitas daquelas que o sueco August Strindberg (1849-1912) escreveu e não mereceram holofotes correspondentes a dramas naturalistas como "O Sonho".
"As decisões são culturalmente relativas. O Royal Court é um teatro que recebe uma verba da coroa inglesa e se propõe a montar a dramaturgia com temas da contemporaneidade. A definição do que é contemporâneo pode ser muito restrita. Então, de fato, eles estão mais preocupados com histórias ambientadas na época que a gente vive, recorrentemente num contexto urbano", afirma.

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