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CINEMA
Para Ivana Bentes, indicações de "Cidade de Deus", que reestréia hoje, ampliam visão exótica do Brasil no mundo
Oscar confirma caricatura, diz estudiosa
DA REPORTAGEM LOCAL
Motorizado pela disputa de
quatro estatuetas no Oscar 2004, o
filme "Cidade de Deus" reestréia
hoje em São Paulo. Traz de volta à
pauta, também, discussões sobre
ética, estética e política que o
acompanharam em sua trajetória
inicial.
Em 2002, o filme de Fernando
Meirelles se tornou pedra angular
do debate em torno de uma suposta "cosmética da fome". O termo foi cunhado por Ivana Bentes,
professora e pesquisadora da área
de comunicação e cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em confronto à "estética da fome" do cinema novo de
Glauber Rocha, nos anos 60.
Para Bentes, o triunfo inicial das
indicações ao Oscar não suaviza,
mas antes confirma suas hipóteses de dois anos atrás.
"O filme é altamente eficiente
como linguagem, mas o Oscar é
uma comprovação. "Cidade de
Deus" pega um tema local, da favela e das drogas, e o trabalha na
chave do cinema hollywoodiano
de ação, a meu ver sem distanciamento crítico", afirma a pesquisadora, que prepara um livro sobre
a dita "cosmética da fome".
Ela polemiza, perguntando
quando o Brasil será capaz de fazer grandes filmes brasileiros, e
não norte-americanos. E logo responde: "Acho que já fazemos, há
muito tempo".
O rapper carioca MV Bill, que
fez restrições públicas ao efeito
que "Cidade de Deus" traria à comunidade real de Cidade de Deus,
é outro que afirma que as indicações ao Oscar não mudam suas
opiniões.
Ele diz que não criticou aspectos
técnicos ou cinematográficos do
filme, mas sim preconceitos e estigmas que ele reforçaria sobre
sua comunidade. Afirma que a
partir das críticas que fez, participou de reuniões com representantes federais, estaduais e municipais de governo.
"Muitas coisas foram prometidas, e a partir dali, pelo menos
com a Cidade de Deus o filme já
teria cumprido seu papel social.
Mas o tempo passou e ficamos falando sozinhos de novo", diz.
"Vou torcer para o filme receber
os Oscar, só que o nosso Oscar só
virá em forma de ações", completa o rapper.
Caricaturas
Para Bentes, do "Orfeu Negro"
de Marcel Camus, em 1959, a "Cidade de Deus", a representação
da favela brasileira viajou de um
paraíso idílico ao inferno que apenas representa pobres se matando
uns aos outros. "É quase igualmente caricatural nos dois casos."
Ela compara a imagem dos traficantes negros animalizados, que
se matam uns aos outros em "Cidade de Deus", a dos "Assassinos
por Natureza" (Oliver Stone,
1994) de Hollywood. "Por isso
chegou ao Oscar", diz.
"Maniqueísta" e "conservador",
segundo suas palavras, o filme levaria por intermédio do Oscar
uma nova imagem exótica do
Brasil, do "turismo do inferno".
O Oscar daria força a um movimento de legitimação da publicidade dos temas sociais, que ela
identifica também em filmes anteriores como "Central do Brasil"
(Walter Salles, 1998).
Bentes nega que isso signifique
uma particularização, no cinema,
da retórica social do governo Lula, via Fome Zero. "Não diria que
Lula está fazendo uma cosmética
da fome. Tudo isso faz parte de
um mesmo caldeirão efervescente
de reformulação social."
A pesquisadora se descreve, ela
própria, como ambivalente em
relação à acolhida do filme pela
Academia. "Por um lado rompe
com nosso complexo de inferioridade. Mas, por outro, vamos continuar sendo apresentados como
assassinos por natureza?"
Ela tenta condensar o sentimento ambíguo: "Que bom que estamos no Oscar. Que pena que é um
filme que vai reforçar clichês e
formar clichês da próxima imagem internacional sobre o tema".
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
CIDADE DE DEUS. Produção: Brasil,
2002. Direção: Fernando Meirelles (co-direção: Katia Lund). Com: Matheus
Nachtergaele, Seu Jorge. Quando:
reestréia hoje, nos cines Bristol, Jardim
Sul e circuito.
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