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Crítica
Livro original é bem escrito "tour de force"
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Poucas obras têm a capacidade de agregar em
torno de si leituras e
opiniões tão díspares, quanto O
leitor de Bernhard Schlink.
Mas uma coisa é certa: para
quem se interessa pela relação
entre literatura e trabalho da
memória do passado violento,
este livro é de leitura obrigatória. Primeiro porque ele é bem
escrito e tem fina auto-ironia.
Em segundo lugar, porque ele
realiza um verdadeiro tour de
force. Afinal, ele apresenta uma
história de amor, carnal e muito intensa, tendo como pano de
fundo os campos de concentração nazistas.
O romance apresenta uma
tripla temporalidade: o ato de
escritura de um jurista, Michael Berg, nos anos 1990, que
redige seu livro como um testemunho para "se livrar" de seu
passado; o romance entre este
narrador quando tinha 15 anos
e uma mulher, Hanna, de 36,
logo após a Segunda Guerra; e o
período do julgamento desta
mulher, nos anos 1960. Esta tripla temporalidade é assombrada pelos fatos terríveis que são
revelados no julgamento: Hanna havia sido uma guarda em
Auschwitz e responsável por
uma série de mortes.
O romance de Michael e
Hanna era marcado por um original ritual: antes de irem para
a cama, ele lia longamente para
ela os clássicos da literatura
alemã e universal. Após o julgamento, quando Hanna é condenada, este ritual de leitura é
prolongado: Michael, que só se
dera conta de que Hanna era
analfabeta no julgamento, passa a enviar fitas com suas leituras.
Do ponto de vista da história
da representação do Holocausto, este livro, de 1995, representou uma guinada: sua estrutura
e modo de apresentação da história de Michael e Hanna fazem da figura do guarda de
campo de concentração, uma
pessoa digna de compaixão, de
amor e de tudo mais. Schlink,
ele mesmo um jurista, acaba
construindo com Michael um
alter-ego em busca de resolver
a questão da sua relação com o
passado da Alemanha.
Ele apresenta o drama da sua
geração que, nos anos 1960, se
empenhou em julgar e revelar o
que ocorrera no nazismo, em
denunciar o escândalo dos nazistas que continuavam em altos postos ainda naquele período, e que assumiu de modo radical a culpa e a vergonha pelo
que seus "pais" haviam feito.
Mesmo se no livro o pai de Michael não tenha de fato feito
nada. Ele representa a impotência da Alemanha Iluminista:
é um filósofo, autor de obras sobre Kant e Hegel, que fez um
exílio interno durante o período nazista.
Mas ao longo do julgamento
ocorre uma virada na trama: de
jurista empenhado nesta revisão e revelação do passado, ele
se torna empático com Hanna e
cada vez mais anestesiado
diante das terríveis histórias
que eram narradas no tribunal.
A irrepresentabilidade do Holocausto é transformada em
impossibilidade de seu julgamento. O efeito catártico do tribunal produz este fruto paradoxal: na medida em que "faz
justiça" também permite uma
identificação com Hanna. Esta
personagem é tanto a figura
singular (que permite a compaixão) como também mais de
uma vez é apresentada como
uma espécie de "mãe-Alemanha", analfabeta e ainda na menoridade, oposta à Alemanha
espiritual de Goethe e Schiller.
A culpa que Michael sentia com
relação ao que a geração anterior havia feito é transformada
em culpa com relação a Hanna.
Sexo, amor, escritura e morte
dançam aqui uma coreografia
da memória que não deixa o leitor incólume.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor de teoria literária na Unicamp (Universidade
Estadual de Campinas) e autor,
entre outros, de "O Local da Diferença" (ed. 34).
O LEITOR
Autor: Bernhard Schlink
Tradução: Pedro Süssekind
Editora: Record
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