São Paulo, sábado, 06 de fevereiro de 2010

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ANTONIO CICERO

"Carpe diem"


A frase "carpe diem" tornou-se um aforismo epicurista, bem como tema poético recorrente


UM DOS poemas mais famosos do poeta romano Horácio é a ode 1.11. Nela, dirigindo-se a uma personagem feminina, Leucônoe, o poeta lhe diz que não procure adivinhar o futuro: "Não interrogues, não é lícito a mim ou a ti saber / que fim os deuses darão, Leucônoe. Nem tentes / os cálculos babilônicos. Antes aceitar o que for [...]". Ele então lhe recomenda que decante logo os vinhos, pois, do contrário, "enquanto conversamos terá fugido despeitada / a hora. Colhe o dia ["carpe diem"], minimamente crédula no porvir".
A frase "carpe diem" tornou-se um aforismo epicurista e um tema poético a que inúmeros poetas recorrem. No Brasil, por exemplo, Gregório de Matos, imitando um famoso poema de Góngora, diz, nos últimos tercetos de um soneto dedicado a uma "discreta e formosíssima Maria": "Goza, goza da flor da mocidade, / Que o tempo trata a toda ligeireza / E imprime em toda flor sua pisada. // Ó, não aguarde que a madura idade / te converta essa flor, essa beleza, / Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada".
O poeta Mário Faustino tem um belíssimo soneto chamado "Carpe Diem", que começa: "Que faço deste dia, que me adora? / Pegá-lo pela cauda, antes da hora / Vermelha de furtar-se ao meu festim? / Ou colocá-lo em música, em palavra, / Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?" e termina, ainda falando do dia: "(Mas já de sombras vejo que se cobre / Tão surdo ao sonho de ficar tão nobre. / Já nele a luz da lua a morte mora, / De traição foi feito: vai-se embora)".
Mas Horácio, em outra ode igualmente famosa, a 3.30, orgulha-se de ter feito, com seus livros de Odes, "um monumento mais duradouro que o bronze / mais alto do que a régia construção das pirâmides / que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo / nem a inumerável série dos anos, // nem a fuga dos tempos poderão destruir / Nem tudo de mim morrerá [...] / jovem para sempre crescerei / no louvor dos vindouros [...]" (trad. de Pedro Braga Falcão). A própria admiração que a ode continua a suscitar, parecendo confirmar o vaticínio de Horácio, aumenta mais essa admiração.
Ou seja, enquanto na ode 1.11 o poeta recomenda ignorar o futuro, na ode 3.30 ele exalta o futuro dos seus poemas. Que haja uma contradição aqui não é nenhum problema. Diferentemente dos textos teóricos, os poéticos podem contradizer-se, ainda que sejam do mesmo autor, sem que, com isso, sofram o menor arranhão.
Se ambos forem bons, então, ao ler o primeiro, concordamos inteiramente com ele; ao ler o segundo, é com este que concordamos inteiramente, sem deixar de continuar a concordar com o primeiro. Ambos podem ser profundamente verdadeiros ou reveladores. Um poema é capaz de contradizer a si próprio e ser uma obra-prima: ele pode até ter que se contradizer, como o "Odeio e Amo" ("Odi et amo"), de Catulo, para vir a ser uma obra-prima.
De todo modo, o poeta Haroldo de Campos escreveu um magnífico poema, intitulado "Horácio Contra Horácio", que diz: "ergui mais do que o bronze ou que a pirâmide / ao tempo resistente um monumento / mas gloria-se em vão quem sobre o tempo / elusivo pensou cantar vitória: / não só a estátua de metal corrói-se / também a letra os versos a memória / -quem nunca soube os cantos dos hititas / ou dos etruscos devassou o arcano? / o tempo não se move ou se comove / ao sabor dos humanos vanilóquios - / rosas e vinho vamos! celebremos / o instante a ruína a desmemória".
Não só, portanto, aos poetas é lícito contradizer-se uns aos outros ou a si próprios, tanto em diferentes poemas quanto no mesmo poema, como tais contradições podem constituir o motivo de um poema.
Observo, porém, que a ode 1.11 pode também ser lida de modo que não necessariamente contradiga a ode 3.30. Digamos que a concepção de poesia subjacente à ode 3.30 seja que, dado que o grande poema vale por si, ele é, em princípio, indiferente às contingências do tempo. Sendo assim, não se concebe um tempo em que tal poema venha a caducar.
Logo, mesmo reconhecendo a possibilidade de que os textos se percam, talvez a verdadeira razão do orgulho de Horácio seja o fato de que suas odes intrinsecamente merecem existir. Isso quer dizer que elas merecem existir AGORA.
E merecem existir agora, seja quando for agora: seja quando for que alguém diga ou pense: "agora". É desse modo que, precisamente ao celebrar "o instante a ruína a desmemória", o poema se faz eterno agora. Nesse sentido, apreciá-lo é colher o dia: "carpere diem".


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