São Paulo, sábado, 06 de março de 2004

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LITERATURA/CRÍTICA

Italiano comenta a passagem do tempo e faz referência a Proust em "Está Ficando Tarde Demais"

Com sutileza, Tabucchi deflagra a memória

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que livro resulta da mente de um escritor quando ela está ocupada em pensar nos seguintes assuntos: o suicídio por intoxicação com gás do grande contista iraniano da primeira metade do século 20, Sadeq Hedayat, os estudos do cientista italiano Andréa Cisalpino sobre a circulação do sangue no corpo humano, a função do neurotransmissor serotonina na psique das pessoas, o limite da suportabilidade da dor e a lembrança de antigas amigas?
No caso de Antonio Tabucchi, uma coleção de cartas fictícias masculinas dirigidas a mulheres com o relato de experiências espirituais e emocionadas no passado e no presente. "Está Ficando Tarde Demais", escrito entre 1995 e 2001 e agora publicado no Brasil, é mais uma pérola delicada e valiosa que se soma ao conjunto do trabalho desse autor de 61 anos que é um dos mais complexos e importantes de sua geração.
Os pequenos contos epistolares desse volume não relatam necessariamente uma história. Tabucchi é escritor da espécie de Proust e Musil, em que o enredo funciona apenas como um acessório para a discussão de idéias importantes sobre a condição humana. Existe uma trama, é verdade, mas ela apenas sustenta uma discussão filosófica entre autor e leitor.
O tema da passagem do tempo está presente em vários dos capítulos do livro, como indica o próprio título. Há referências explícitas e reverenciais a Proust aqui e ali. Os truques e artimanhas da memória são comentados com sutileza, profundidade e contida emoção: "...o passado, ele também, é feito de momentos, e cada momento é como um minúsculo grãozinho que escapa. Retê-lo, em si e por si, seria fácil, mas juntá-lo aos demais é impossível. Em suma: lógica nenhuma".
Tabucchi é cidadão da Itália, mas tem uma ligação muito íntima com a língua portuguesa, na qual já escreveu alguns de seus livros. O mais famoso de todos (porque nele se baseou o último filme da vida de Marcello Mastroianni), "Afirma Pereira", é ambientado em Lisboa.
"Aquela imagem tocou a memória de um Eu tão distante no tempo (e portanto tão distante de Mim que olhava para a fotografia) que me levou a considerar a possibilidade de atribuir a memória daquela imagem a um Mim que de mim fosse só aparência ou ectoplasma perdido no tempo. Enfim, praticamente um desconhecido que escrevia uma carta."
Assim são as cartas de "Está Ficando Tarde Demais". São como relatos de alguém que já não é, despertado por algum elemento deflagrador da memória autêntica. Trata-se de uma revisita e de uma ampliação dos conceitos básicos de "Em Busca do Tempo Perdido". Além das madeleines, há outros estopins para o que Proust considerava a vivência espiritualmente mais elevada, que nos transporta a "só uma concentração na recordação mais escondida, aquela que nos fez feliz no passado e que gostaríamos que fosse a nossa vida futura, admitindo que ela exista, só aquele ponto ali nada mais".


Carlos Eduardo Lins da Silva, 51, jornalista, é diretor da Patri Relações Governamentais e Políticas Públicas Está Ficando Tarde Demais

    
Autor: Antonio Tabucchi
Editora: Rocco
Quanto: R$ 27,50 (196 págs.)


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