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COMENTÁRIO
Democracia é vilã para os heróis de "24 Horas" e "West Wing"
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
O sistema de sustentação da
democracia é provavelmente o ponto da estrutura dos EUA
do qual os americanos mais se orgulham, pelo menos da boca para
fora. No limite, esse mesmo sistema, quando se torna empecilho
para que uma certa "justiça" prevaleça, passa a ser objeto do mais
profundo desprezo. Essa é a mensagem clara de "West Wing" e "24
Horas", os principais seriados políticos dos últimos anos nos EUA.
Ambas as produções enfatizam
o poder e também suas limitações, que só podem ser superadas
ou por meio da negociação, ou,
quando isso parece impossível,
por meio da "quebra de protocolo". Ignorar as regras do sistema é,
de certo modo, colocar-se acima
dele, o que é imoral em princípio,
mesmo que a desculpa seja boa.
Mas, como Maquiavel escreveu
no clássico "O Príncipe" (1513),
poder e sua manutenção nada
têm a ver com moral, mas com interesse de Estado, e isso não é essencialmente ruim. Governar tendo em vista somente as rígidas regras morais pode ser tão pernicioso quanto ignorá-las totalmente
-basta ver os exemplos do austríaco Ferdinando 2º, que fragilizou o Sacro Império Romano
Germânico no século 17 porque
trocou a estratégia política pelo
absolutismo católico, e George W.
Bush, filho dileto da extrema direita religiosa americana, para
quem a diplomacia é uma entediante perda de tempo.
Em "West Wing", no entanto, o
presidente americano, Josiah Bartlet, age como se tivesse lido Maquiavel de ponta-cabeça. Em um
dos episódios, ele manda destruir
Damasco porque os sírios derrubaram um avião americano que
levava um amigo seu para a Jordânia. Seus assessores militares o
advertem de que esse não é o procedimento correto -de acordo
com os manuais da administração, a resposta tem de ser proporcional, isto é, para um avião derrubado, um radar destruído. Bartlet reluta em aceitar o manual e
ordena um plano de ataque mais
abrangente. Novamente alertado
pelos assessores de que uma ação
desse tipo mataria muitos civis e
provavelmente feriria o frágil
equilíbrio diplomático regional,
Bartlet finalmente aceita o que
manda a regra, mas fica evidentemente contrariado.
Resumo da ópera: prevalece o
interesse de Estado em detrimento do desejo de vingança pessoal
do sujeito que detém o poder,
conforme Maquiavel pensou em
seu projeto republicano. Mas o
episódio provoca deliberadamente a impressão de que quem está
certo é Bartlet e de que é preciso
alterar o sistema de decisões, para
que "injustiças" como a cometida
pelos sírios não fiquem impunes,
pelo menos na aparência.
Batman
Jack Bauer, diferentemente de
Bartlet, não espera que lhe digam
o que fazer segundo o que manda
o protocolo.
O astro de "24 Horas" é a essência da quebra das regras, uma espécie de vingador moralmente
motivado, cuja missão nem de
longe pode se dar ao luxo de respeitar os limites impostos pelas
instituições democráticas nucleares da vida americana. A exemplo
de outros de sua espécie ao longo
da história da ficção heróica dos
EUA, como Batman, Bauer é um
contraventor consciente, disposto
a ir até o fim para cumprir sua tarefa, superior a qualquer outra
consideração política.
Em sua jornada, Bauer conta
com a ajuda de outros funcionários públicos que igualmente descrêem do sistema, e este acaba se
tornando, afinal, o próprio vilão a
ser combatido.
A ficção, assim, justifica o esfarelamento das bases institucionais do país, com óbvio prejuízo
para a democracia, conforme previsto por Montesquieu em "O Espírito das Leis" (1748): "Corrompe-se o espírito da democracia
não somente quando se perde o
espírito de igualdade, mas ainda
quando se quer levar o espírito da
igualdade ao extremo, procurando cada um ser igual àquele que
escolheu para comandá-lo".
Quando Bauer julga estar acima
de seus superiores, ou quando
Bartlet se enfurece porque seu poder é limitado por normas aceitas
pelo conjunto da sociedade que o
elegeu, questionam-se, essencialmente, as restrições impostas pelo
regime democrático, tão festejado
pelos americanos.
Na primeira temporada de "24
Horas", por exemplo, o senador e
candidato a presidente David Palmer, ameaçado de morte, usa sua
influência de favorito à Casa
Branca para forçar o governo a
ajudar Bauer enquanto o agente
atropela os obstáculos "oficiais"
que são colocados em seu caminho. Na segunda temporada, isso
nem é mais necessário -afinal,
Palmer já é o presidente, e Bauer,
o chefe do contraterrorismo.
Assim como em "West Wing",
resta a sensação de que heroísmo
e respeito institucional são coisas
incompatíveis. A certa altura, o
próprio Palmer faz a incômoda
pergunta: "Você acredita no sistema?". Para Bauer, Bartlet, Palmer
e tantos outros, a resposta é óbvia:
sim, desde que não me atrapalhe
enquanto eu estiver tentando salvar o mundo de si mesmo.
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