São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

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COMENTÁRIO

Democracia é vilã para os heróis de "24 Horas" e "West Wing"

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

O sistema de sustentação da democracia é provavelmente o ponto da estrutura dos EUA do qual os americanos mais se orgulham, pelo menos da boca para fora. No limite, esse mesmo sistema, quando se torna empecilho para que uma certa "justiça" prevaleça, passa a ser objeto do mais profundo desprezo. Essa é a mensagem clara de "West Wing" e "24 Horas", os principais seriados políticos dos últimos anos nos EUA.
Ambas as produções enfatizam o poder e também suas limitações, que só podem ser superadas ou por meio da negociação, ou, quando isso parece impossível, por meio da "quebra de protocolo". Ignorar as regras do sistema é, de certo modo, colocar-se acima dele, o que é imoral em princípio, mesmo que a desculpa seja boa.
Mas, como Maquiavel escreveu no clássico "O Príncipe" (1513), poder e sua manutenção nada têm a ver com moral, mas com interesse de Estado, e isso não é essencialmente ruim. Governar tendo em vista somente as rígidas regras morais pode ser tão pernicioso quanto ignorá-las totalmente -basta ver os exemplos do austríaco Ferdinando 2º, que fragilizou o Sacro Império Romano Germânico no século 17 porque trocou a estratégia política pelo absolutismo católico, e George W. Bush, filho dileto da extrema direita religiosa americana, para quem a diplomacia é uma entediante perda de tempo.
Em "West Wing", no entanto, o presidente americano, Josiah Bartlet, age como se tivesse lido Maquiavel de ponta-cabeça. Em um dos episódios, ele manda destruir Damasco porque os sírios derrubaram um avião americano que levava um amigo seu para a Jordânia. Seus assessores militares o advertem de que esse não é o procedimento correto -de acordo com os manuais da administração, a resposta tem de ser proporcional, isto é, para um avião derrubado, um radar destruído. Bartlet reluta em aceitar o manual e ordena um plano de ataque mais abrangente. Novamente alertado pelos assessores de que uma ação desse tipo mataria muitos civis e provavelmente feriria o frágil equilíbrio diplomático regional, Bartlet finalmente aceita o que manda a regra, mas fica evidentemente contrariado.
Resumo da ópera: prevalece o interesse de Estado em detrimento do desejo de vingança pessoal do sujeito que detém o poder, conforme Maquiavel pensou em seu projeto republicano. Mas o episódio provoca deliberadamente a impressão de que quem está certo é Bartlet e de que é preciso alterar o sistema de decisões, para que "injustiças" como a cometida pelos sírios não fiquem impunes, pelo menos na aparência.

Batman
Jack Bauer, diferentemente de Bartlet, não espera que lhe digam o que fazer segundo o que manda o protocolo.
O astro de "24 Horas" é a essência da quebra das regras, uma espécie de vingador moralmente motivado, cuja missão nem de longe pode se dar ao luxo de respeitar os limites impostos pelas instituições democráticas nucleares da vida americana. A exemplo de outros de sua espécie ao longo da história da ficção heróica dos EUA, como Batman, Bauer é um contraventor consciente, disposto a ir até o fim para cumprir sua tarefa, superior a qualquer outra consideração política.
Em sua jornada, Bauer conta com a ajuda de outros funcionários públicos que igualmente descrêem do sistema, e este acaba se tornando, afinal, o próprio vilão a ser combatido.
A ficção, assim, justifica o esfarelamento das bases institucionais do país, com óbvio prejuízo para a democracia, conforme previsto por Montesquieu em "O Espírito das Leis" (1748): "Corrompe-se o espírito da democracia não somente quando se perde o espírito de igualdade, mas ainda quando se quer levar o espírito da igualdade ao extremo, procurando cada um ser igual àquele que escolheu para comandá-lo".
Quando Bauer julga estar acima de seus superiores, ou quando Bartlet se enfurece porque seu poder é limitado por normas aceitas pelo conjunto da sociedade que o elegeu, questionam-se, essencialmente, as restrições impostas pelo regime democrático, tão festejado pelos americanos.
Na primeira temporada de "24 Horas", por exemplo, o senador e candidato a presidente David Palmer, ameaçado de morte, usa sua influência de favorito à Casa Branca para forçar o governo a ajudar Bauer enquanto o agente atropela os obstáculos "oficiais" que são colocados em seu caminho. Na segunda temporada, isso nem é mais necessário -afinal, Palmer já é o presidente, e Bauer, o chefe do contraterrorismo.
Assim como em "West Wing", resta a sensação de que heroísmo e respeito institucional são coisas incompatíveis. A certa altura, o próprio Palmer faz a incômoda pergunta: "Você acredita no sistema?". Para Bauer, Bartlet, Palmer e tantos outros, a resposta é óbvia: sim, desde que não me atrapalhe enquanto eu estiver tentando salvar o mundo de si mesmo.


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