São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

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FERREIRA GULLAR

Quixote, um maluco beleza

Cada um de nós, gente de muita ou pouca idade, terá sempre alguma coisa a lembrar ou a contar a propósito de "Dom Quixote de la Mancha", a obra-prima de Miguel de Cervantes, cuja publicação completa quatro séculos neste ano. Eu também tenho algumas e, neste momento, a que me vem à lembrança tem muito a ver com a história do próprio Cervantes, que, por razões diversas, esteve em cana quatro vezes durante sua vida: "Dom Quixote" foi o livro que levei comigo para a cadeia, naquele dezembro de 1968, quando um oficial e dois soldados do Exército invadiram meu apartamento. Era uma edição espanhola, tipo livro de bolso, mas bem volumosa.
Os anos se passaram até que Renato Guimarães -também provado nos cárceres da ditadura-, já então editor, me sugeriu fazer uma tradução do livro famoso adaptada para adolescentes. Tratei de reler o original de Cervantes e logo vi que, para torná-lo acessível ao leitor jovem de hoje, sem lhe trair a essência, ia ter que suar sangue.
Suar sangue é exagero porque, na verdade, ao mergulhar no trabalho, foi tanto o prazer que sentia em cada frase de Sancho e Dom Quixote que a labuta virou divertimento. Mal acordava, debruçava-me sobre o texto de Cervantes com entusiasmo renovado.
Ler para traduzir é diferente de ler por ler, claro. Nesse caso, teria que mexer naquilo que é, no meu entender, o fundamental desta obra: os diálogos. Dom Quixote ficou famoso pelas loucuras que praticou, como lutar contra moinhos de vento julgando que fossem gigantes ou atacar rebanhos de carneiros por achar que se tratassem de um Exército inimigo. São episódios divertidos, cheios de humor. No entanto, onde de fato se apreende o sentido profundo daquelas bravatas, as lições de vida e a sábia insensatez do cavaleiro andante, é nos diálogos.
Ao contrário do que muita gente afirma, não vejo Dom Quixote como um alegórico batalhador pela justiça social ou um visionário defensor dos direitos humanos. Ele é de fato, como afirma seu criador, um sujeito que ficou de miolo mole por tanto ler aventuras de cavalaria e um sectário seguidor das normas que regiam a ação dos cavaleiros. Seus propósitos são os mais altos e os mais nobres, mas a sua ação para pô-los em prática resulta quase sempre desastrosa. Os criminosos que, a mando do rei, estão sendo conduzidos para as galés e que ele liberta logo em seguida o apedrejam, sendo que um deles rouba o burrico de Sancho, deixando-o a pé. E o que dizer do pobre rapaz que estava sendo espancado pelo patrão? Livra-o dos açoites, dita uma lição de moral ao algoz e vai embora, abandonando-o à vingança agora redobrada do espancador. A lição que Cervantes nos passa, através do fundamentalismo de seu personagem, é muito atual, aliás, pois nos mostra que, tanto no século 17 como hoje, quem se julga imbuído da verdade pode trazer mais desgraça do que felicidade àqueles que diz defender.
"Dom Quixote" é unanimemente considerado um dos maiores, senão o maior, livro jamais escrito. Se esse tipo de opinião carece de objetividade, não deixa de refletir alguma verdade e, neste caso, baseia-se tanto no extraordinário interesse que o livro tem despertado através dos séculos como no fato de que influiu na criação de escritores, artistas plásticos, teatrólogos e cineastas. Algumas das formas mais atuais da construção narrativa na literatura têm sua origem nele. Mas, por incrível que pareça, ao que tudo indica, não era pretensão de Cervantes criar obra de tamanha importância.
Satirizar os romances de cavalaria com seus heróis e heroínas implausíveis, este foi o propósito primeiro do escritor. Por isso, no lugar dos cavaleiros lindos e intimoratos, pôs um fidalgo decadente e maluco, que elegeu dona de seu coração a uma camponesa gorda e rude, transformada por ele numa dama nobre e linda. Calcou tanto nesse lado anti-romântico dos personagens que, temendo afugentar os leitores, entremeou as aventuras de seus dois protagonistas com histórias românticas que pouco ou nada têm a ver com eles. Essas histórias eu as excluí de minha adaptação.
Alguém já disse que os grandes livros são aqueles escritos não só pelos autores mas também pela vida. "Dom Quixote" é um exemplo disso. Ao eleger como tema de seu livro o conflito entre a realidade do mundo e a necessidade humana de ultrapassá-la, Cervantes passa a lidar com matéria extremamente rica, tanto mais que encarnada por personagens de comovente humanidade. A visão satírica do autor, personificada num fidalgo abilolado, muda à medida em que Cervantes se identifica com ele, comove-se com seus disparates. Por isso, no final do livro, quando Quixote readquire a sensatez, é o sensato Sancho Pança quem lhe implora a que volte às aventuras de antes, volte às bravatas e maluquices que, se resultavam em surras e desventuras, tornavam a vida bem mais divertida e emocionante.
Só mesmo um personagem como este e uma história como esta, para nos exporem à nossa própria e invencível contradição: queremos a sensatez que protege, mas não resistimos à loucura que arrebata. E, por isso, inventamos a arte, que nos permite experimentar a loucura sem correr o risco de ir parar num hospício.


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