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FERREIRA GULLAR
Quixote, um maluco beleza
Cada um de nós, gente de
muita ou pouca idade, terá
sempre alguma coisa a lembrar
ou a contar a propósito de "Dom
Quixote de la Mancha", a obra-prima de Miguel de Cervantes,
cuja publicação completa quatro
séculos neste ano. Eu também tenho algumas e, neste momento, a
que me vem à lembrança tem
muito a ver com a história do próprio Cervantes, que, por razões
diversas, esteve em cana quatro
vezes durante sua vida: "Dom
Quixote" foi o livro que levei comigo para a cadeia, naquele dezembro de 1968, quando um oficial e dois soldados do Exército
invadiram meu apartamento.
Era uma edição espanhola, tipo
livro de bolso, mas bem volumosa.
Os anos se passaram até que Renato Guimarães -também provado nos cárceres da ditadura-,
já então editor, me sugeriu fazer
uma tradução do livro famoso
adaptada para adolescentes. Tratei de reler o original de Cervantes
e logo vi que, para torná-lo acessível ao leitor jovem de hoje, sem
lhe trair a essência, ia ter que suar
sangue.
Suar sangue é exagero porque,
na verdade, ao mergulhar no trabalho, foi tanto o prazer que sentia em cada frase de Sancho e
Dom Quixote que a labuta virou
divertimento. Mal acordava, debruçava-me sobre o texto de Cervantes com entusiasmo renovado.
Ler para traduzir é diferente de
ler por ler, claro. Nesse caso, teria
que mexer naquilo que é, no meu
entender, o fundamental desta
obra: os diálogos. Dom Quixote ficou famoso pelas loucuras que
praticou, como lutar contra moinhos de vento julgando que fossem gigantes ou atacar rebanhos
de carneiros por achar que se tratassem de um Exército inimigo.
São episódios divertidos, cheios de
humor. No entanto, onde de fato
se apreende o sentido profundo
daquelas bravatas, as lições de vida e a sábia insensatez do cavaleiro andante, é nos diálogos.
Ao contrário do que muita gente afirma, não vejo Dom Quixote
como um alegórico batalhador
pela justiça social ou um visionário defensor dos direitos humanos. Ele é de fato, como afirma
seu criador, um sujeito que ficou
de miolo mole por tanto ler aventuras de cavalaria e um sectário
seguidor das normas que regiam
a ação dos cavaleiros. Seus propósitos são os mais altos e os mais
nobres, mas a sua ação para pô-los em prática resulta quase sempre desastrosa. Os criminosos que,
a mando do rei, estão sendo conduzidos para as galés e que ele liberta logo em seguida o apedrejam, sendo que um deles rouba o
burrico de Sancho, deixando-o a
pé. E o que dizer do pobre rapaz
que estava sendo espancado pelo
patrão? Livra-o dos açoites, dita
uma lição de moral ao algoz e vai
embora, abandonando-o à vingança agora redobrada do espancador. A lição que Cervantes nos
passa, através do fundamentalismo de seu personagem, é muito
atual, aliás, pois nos mostra que,
tanto no século 17 como hoje,
quem se julga imbuído da verdade pode trazer mais desgraça do
que felicidade àqueles que diz defender.
"Dom Quixote" é unanimemente considerado um dos maiores, senão o maior, livro jamais
escrito. Se esse tipo de opinião carece de objetividade, não deixa de
refletir alguma verdade e, neste
caso, baseia-se tanto no extraordinário interesse que o livro tem
despertado através dos séculos como no fato de que influiu na criação de escritores, artistas plásticos, teatrólogos e cineastas. Algumas das formas mais atuais da
construção narrativa na literatura têm sua origem nele. Mas, por
incrível que pareça, ao que tudo
indica, não era pretensão de Cervantes criar obra de tamanha importância.
Satirizar os romances de cavalaria com seus heróis e heroínas
implausíveis, este foi o propósito
primeiro do escritor. Por isso, no
lugar dos cavaleiros lindos e intimoratos, pôs um fidalgo decadente e maluco, que elegeu dona de
seu coração a uma camponesa
gorda e rude, transformada por
ele numa dama nobre e linda.
Calcou tanto nesse lado anti-romântico dos personagens que, temendo afugentar os leitores, entremeou as aventuras de seus dois
protagonistas com histórias românticas que pouco ou nada têm
a ver com eles. Essas histórias eu
as excluí de minha adaptação.
Alguém já disse que os grandes
livros são aqueles escritos não só
pelos autores mas também pela
vida. "Dom Quixote" é um exemplo disso. Ao eleger como tema de
seu livro o conflito entre a realidade do mundo e a necessidade
humana de ultrapassá-la, Cervantes passa a lidar com matéria
extremamente rica, tanto mais
que encarnada por personagens
de comovente humanidade. A visão satírica do autor, personificada num fidalgo abilolado, muda
à medida em que Cervantes se
identifica com ele, comove-se com
seus disparates. Por isso, no final
do livro, quando Quixote readquire a sensatez, é o sensato Sancho Pança quem lhe implora a
que volte às aventuras de antes,
volte às bravatas e maluquices
que, se resultavam em surras e
desventuras, tornavam a vida
bem mais divertida e emocionante.
Só mesmo um personagem como este e uma história como esta,
para nos exporem à nossa própria
e invencível contradição: queremos a sensatez que protege, mas
não resistimos à loucura que arrebata. E, por isso, inventamos a
arte, que nos permite experimentar a loucura sem correr o risco de
ir parar num hospício.
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