|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Goethe, Fausto, a tempestade e o impulso
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
- Luz! Mais luz!
Na manhã de 22 de março de
1832, Goethe acordara cansado. Tinha em sua carne a fadiga de 83 anos. Pediu que o camareiro abrisse a janela para
que a luz entrasse. Mandou
que lhe trouxesse uma pasta.
Mas não havia pasta alguma e
ele apenas murmurou: "Nada.
Foi um fantasma... Mais um
fantasma..."
Ao meio-dia, chamou Otília,
sua companheira dos últimos
tempos. Disse então suas palavras finais, bem prosaicas por
sinal: "Vem cá... Me dá a sua
mãozinha..."
Ele resumia em três códigos
(luz, visão e amor) toda a sua
vida e obra. Já afirmara e confirmara diversas vezes que
"minha vida e minha obra são
uma coisa só". A ansiedade
pela luz, a obsessão pelos fantasmas e a necessidade da mulher formaram ao mesmo tempo a sua carne e a sua alma.
Da tragédia de Werther, que
arrebenta o coração com um
tiro por causa de um amor impossível, à orgia de sombras e
de anjos da parte final de
"Fausto", Goethe amou a Luz,
os Fantasmas e a Mulher.
Quem melhor o definiu foi Napoleão Bonaparte, quando
com ele se encontrou em Erfurt. O imperador mandou
chamá-lo. Goethe entrou na
sala. Napoleão levantou-se e
exclamou: "Voilà un homme!"
Apesar disso, ele confessara:
"Sou um poeta de ocasiões".
Com menos de 20 anos contrai
uma enfermidade, retorna a
Frankfurt, onde inicia suas experiências químicas. E ama. E
porque ama, faz versos. Ao terminar os estudos, em Estrasburgo, conhece duas pessoas
importantes para seu destino:
Herder e Friederike.
Johann Gottfried Herder
(1744-1803) era um dos nomes
mais importantes do "Sturm
und Drang" (Tempestade e
Impulso), movimento que daria, com mais impulso do que
tempestade, o contorno definitivo da autonomia literária da
Alemanha. Sua importância
está ligada à descoberta de
Shakespeare, até então mal
traduzido, mal conhecido e
quase absolutamente incompreendido pelos alemães.
Friederike Brion, filha do vigário de Sesenheim, foi o primeiro amor de Goethe e a ela
foram dedicadas suas primeiras poesias líricas, já pessoais,
já goethianas e até hoje das
mais belas da língua alemã.
Goethe entregou-se ao amor e
dele usufruiu tudo: carne e
sentimento. Esgotada a paixão, abandonou a adolescente.
O remorso ficaria para sempre.
Seduzida e abandonada, Friederike forneceria o modelo para Margarida, a moça desgraçada por Fausto.
Ainda em Estrasburgo, Goethe visitava a catedral, passava horas sentindo sobre a cabeça o peso das pedras medievais, das ogivas góticas. Falar
em gótico alemão pode parecer
um pleonasmo. Mas foi ali, na
catedral de Estrasburgo, que o
jovem Goethe pela primeira
vez pensou em fazer o "Fausto".
Já possuía motivações para
isso: o remorso pelo abandono
de Friederike e a atmosfera gótica que seria cenário e pretexto para o laboratório do doutor encanecido e perseguido
pelos fantasmas: "Eis-me visões, sou vosso!"
Ele era alemão: as catedrais
góticas eram dele, a língua
também era dele. E a lenda de
Fausto, escrita e reescrita diversas vezes, era também uma
herança alemã, sua, portanto.
Esboçou um fragmento que
hoje é conhecido como "Urfaust", um projeto de epopéia,
uma obra que só poderia ser
completada na maturidade.
A tradição confirma a hipótese de que houve realmente
um Faust, nascido em Knittlingen, aproximadamente em
1480, e morto em Staufen am
Breisgau, em 1540. Sendo ou
não verdadeira a existência
desse protótipo da vida real, o
fato é que em 1587 já corria na
cidade natal de Goethe um impresso contando a lenda do
homem que vendera a alma ao
demônio. O tema, de tão universal, logo se espraiaria pela
Europa e, em 1588, Christopher
Marlowe (um dos nomes suspeitos de ter escrito a obra de
Shakespeare) monta em Londres seu drama sobre Fausto.
Herder divulgara Shakespeare e os rapazes do "Sturm und
Drang" ficaram deslumbrados
com a maleabilidade cênica do
gênio inglês. Goethe e Schiller
perceberam que o truque shakespeariano residia na facilidade com que ele desprezava a
convenção das três unidades
clássicas de tempo, ação e lugar. Sem essa liberdade, Goethe jamais poderia ter construído o seu monumento literário.
Mas nem só de Shakespeare
viveria o "Sturm und Drang".
Outra influência que afetaria
o movimento é a de Ossian,
pseudônimo do poeta escocês
James Macpherson. Em "Werther", tanto na novela de Goethe como na ópera de Massenet, a cena da leitura dos versos de Ossian é um dos "punti
luminosi".
E o elenco das influências do
movimento não ficaria completo sem Rousseau, que representava o culto da natureza
contra as convenções da sociedade, o conflito do povo contra
a aristocracia. Otto Maria
Carpeaux nota que para "os
jovens alemães, Rousseau seria
a revelação e, em breve, a revolução".
Historicamente, o "Sturm
und Drang" poderia ser resumido no célebre "Goethe e
Schiller", mas aqui cabe lembrar a repugnância de Nietzsche pela copulativa "e", preferindo nomear a famosa dobradinha como se fosse uma coisa
só: "Goethe-Schiller". Tempestade-impulso que levara
Nietzsche à loucura. E a Alemanha a procurar um Mefistófeles que lhe comprasse a alma.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|