São Paulo, sexta, 6 de março de 1998

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Goethe, Fausto, a tempestade e o impulso

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

- Luz! Mais luz!
Na manhã de 22 de março de 1832, Goethe acordara cansado. Tinha em sua carne a fadiga de 83 anos. Pediu que o camareiro abrisse a janela para que a luz entrasse. Mandou que lhe trouxesse uma pasta. Mas não havia pasta alguma e ele apenas murmurou: "Nada. Foi um fantasma... Mais um fantasma..."
Ao meio-dia, chamou Otília, sua companheira dos últimos tempos. Disse então suas palavras finais, bem prosaicas por sinal: "Vem cá... Me dá a sua mãozinha..."
Ele resumia em três códigos (luz, visão e amor) toda a sua vida e obra. Já afirmara e confirmara diversas vezes que "minha vida e minha obra são uma coisa só". A ansiedade pela luz, a obsessão pelos fantasmas e a necessidade da mulher formaram ao mesmo tempo a sua carne e a sua alma.
Da tragédia de Werther, que arrebenta o coração com um tiro por causa de um amor impossível, à orgia de sombras e de anjos da parte final de "Fausto", Goethe amou a Luz, os Fantasmas e a Mulher. Quem melhor o definiu foi Napoleão Bonaparte, quando com ele se encontrou em Erfurt. O imperador mandou chamá-lo. Goethe entrou na sala. Napoleão levantou-se e exclamou: "Voilà un homme!"
Apesar disso, ele confessara: "Sou um poeta de ocasiões". Com menos de 20 anos contrai uma enfermidade, retorna a Frankfurt, onde inicia suas experiências químicas. E ama. E porque ama, faz versos. Ao terminar os estudos, em Estrasburgo, conhece duas pessoas importantes para seu destino: Herder e Friederike.
Johann Gottfried Herder (1744-1803) era um dos nomes mais importantes do "Sturm und Drang" (Tempestade e Impulso), movimento que daria, com mais impulso do que tempestade, o contorno definitivo da autonomia literária da Alemanha. Sua importância está ligada à descoberta de Shakespeare, até então mal traduzido, mal conhecido e quase absolutamente incompreendido pelos alemães.
Friederike Brion, filha do vigário de Sesenheim, foi o primeiro amor de Goethe e a ela foram dedicadas suas primeiras poesias líricas, já pessoais, já goethianas e até hoje das mais belas da língua alemã. Goethe entregou-se ao amor e dele usufruiu tudo: carne e sentimento. Esgotada a paixão, abandonou a adolescente. O remorso ficaria para sempre. Seduzida e abandonada, Friederike forneceria o modelo para Margarida, a moça desgraçada por Fausto.
Ainda em Estrasburgo, Goethe visitava a catedral, passava horas sentindo sobre a cabeça o peso das pedras medievais, das ogivas góticas. Falar em gótico alemão pode parecer um pleonasmo. Mas foi ali, na catedral de Estrasburgo, que o jovem Goethe pela primeira vez pensou em fazer o "Fausto".
Já possuía motivações para isso: o remorso pelo abandono de Friederike e a atmosfera gótica que seria cenário e pretexto para o laboratório do doutor encanecido e perseguido pelos fantasmas: "Eis-me visões, sou vosso!"
Ele era alemão: as catedrais góticas eram dele, a língua também era dele. E a lenda de Fausto, escrita e reescrita diversas vezes, era também uma herança alemã, sua, portanto. Esboçou um fragmento que hoje é conhecido como "Urfaust", um projeto de epopéia, uma obra que só poderia ser completada na maturidade.
A tradição confirma a hipótese de que houve realmente um Faust, nascido em Knittlingen, aproximadamente em 1480, e morto em Staufen am Breisgau, em 1540. Sendo ou não verdadeira a existência desse protótipo da vida real, o fato é que em 1587 já corria na cidade natal de Goethe um impresso contando a lenda do homem que vendera a alma ao demônio. O tema, de tão universal, logo se espraiaria pela Europa e, em 1588, Christopher Marlowe (um dos nomes suspeitos de ter escrito a obra de Shakespeare) monta em Londres seu drama sobre Fausto.
Herder divulgara Shakespeare e os rapazes do "Sturm und Drang" ficaram deslumbrados com a maleabilidade cênica do gênio inglês. Goethe e Schiller perceberam que o truque shakespeariano residia na facilidade com que ele desprezava a convenção das três unidades clássicas de tempo, ação e lugar. Sem essa liberdade, Goethe jamais poderia ter construído o seu monumento literário.
Mas nem só de Shakespeare viveria o "Sturm und Drang". Outra influência que afetaria o movimento é a de Ossian, pseudônimo do poeta escocês James Macpherson. Em "Werther", tanto na novela de Goethe como na ópera de Massenet, a cena da leitura dos versos de Ossian é um dos "punti luminosi".
E o elenco das influências do movimento não ficaria completo sem Rousseau, que representava o culto da natureza contra as convenções da sociedade, o conflito do povo contra a aristocracia. Otto Maria Carpeaux nota que para "os jovens alemães, Rousseau seria a revelação e, em breve, a revolução".
Historicamente, o "Sturm und Drang" poderia ser resumido no célebre "Goethe e Schiller", mas aqui cabe lembrar a repugnância de Nietzsche pela copulativa "e", preferindo nomear a famosa dobradinha como se fosse uma coisa só: "Goethe-Schiller". Tempestade-impulso que levara Nietzsche à loucura. E a Alemanha a procurar um Mefistófeles que lhe comprasse a alma.



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