São Paulo, sexta, 6 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

E a arte foi para a guerra

CELSO FIORAVANTE
enviado especial a Sarajevo

Ainda queimando com a guerra, Sarajevo organizou, em 1994, a mostra "Testemunho da Existência", que viajou para a Europa e EUA. Era a prova de que a arte contemporânea resistia na cidade.
"A mostra chocou os críticos de arte de Nova York. Os críticos compreenderam que essas obras inauguravam uma nova linguagem de símbolos, que dessa linha tênue entre a vida e a morte surgia toda a substância da arte. É isso que se sente nas obras, sem ser patético ou se fixar em elementos literais e naturalistas da guerra", disse Muhamed Karamehmedovic, criador da Academia de Belas Artes e hoje diretor do Teatro Nacional de Sarajevo.
O melhor exemplo surgido nessa "linha tênue", mas absolutamente fértil, é Nebojsa Seric-Soba, que, além de artista, lutou durante três anos na defesa de sua cidade.
Soba obteve reconhecimento internacional no ano passado com a obra "Kiss", exibida na Bienal Internacional de Jovens Artistas, em Rijeka, na Croácia, onde ganhou o primeiro prêmio. A peça é de uma simplicidade genial: dois isqueiros, um vermelho e outro verde, que se olham, posicionados no batente de uma janela.
"Kiss" é uma referência explícita aos "beijos" de Brancusi e de Rodin, mas vai muito além. As cores verde e vermelho representam diferentes temperaturas e emoções, quentes e frias. Também contém uma leitura político-religiosa, já que o verde é a cor-símbolo dos muçulmanos e o vermelho, dos comunistas. Os dois grupos conviveram em harmonia durante o precário regime comunista na Iugoslávia.
A peça também representa um diálogo entre dois momentos da história da arte. Traz em si referências à produção ocidental -arte pop e ready-made- e ao legado cromático dos construtivistas russos.
"Kiss" é ying e yang. Representa a harmonia perfeita, algo que existia em Sarajevo antes da guerra. Mas, ao mesmo tempo em que os isqueiros se beijam, também se colocam em posição de enfrentamento, como duas bocas abertas, prestes a se devorarem.
"A peça narra uma situação em que basta um pequeno atrito para que uma paixão se acenda", disse Soba à Folha.
Também no ano passado, Soba realizou a performance "No Lyrics, No Music, No Country, Nothing...", em que personificou um músico que canta sem voz com um violão sem cordas e uma tabuleta sem dizeres em frente a uma lata com os dizeres "not to be sold or exchanged", usada pelos norte-americanos para acondicionar os alimentos que doavam como ajuda humanitária.
Soba se alimentou da guerra que devorou sua cidade e seu país pelas bordas. Esse sim é um artista antropofágico, apenas para usar o termo mais caro à nossa Bienal.
Sua obra mais importante, porém, não chegou a ser realizada. Durante os três anos em que esteve no front, contra os sérvios, Soba idealizou uma peça de "land art" e construiria, com a ajuda de alguns outros amigos soldados, uma série de trincheiras que reproduziriam as linhas da tela "Broadway Boogie-Woogie", de Piet Mondrian. Chegou a pedir autorização do Exército bósnio, mas ela foi negada, primeiro pelo perigo que ofereceria e também porque não poderia ser fotografada, já que helicópteros não levantavam vôo no front. "Isso sim seria a verdadeira confrontação entre arte e guerra", disse Soba.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.