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E a arte foi para a guerra
CELSO FIORAVANTE
enviado especial a Sarajevo
Ainda queimando com a guerra,
Sarajevo organizou, em 1994, a
mostra "Testemunho da Existência", que viajou para a Europa e
EUA. Era a prova de que a arte
contemporânea resistia na cidade.
"A mostra chocou os críticos de
arte de Nova York. Os críticos
compreenderam que essas obras
inauguravam uma nova linguagem de símbolos, que dessa linha
tênue entre a vida e a morte surgia
toda a substância da arte. É isso
que se sente nas obras, sem ser patético ou se fixar em elementos literais e naturalistas da guerra",
disse Muhamed Karamehmedovic, criador da Academia de Belas
Artes e hoje diretor do Teatro Nacional de Sarajevo.
O melhor exemplo surgido nessa
"linha tênue", mas absolutamente
fértil, é Nebojsa Seric-Soba, que,
além de artista, lutou durante três
anos na defesa de sua cidade.
Soba obteve reconhecimento internacional no ano passado com a
obra "Kiss", exibida na Bienal Internacional de Jovens Artistas, em
Rijeka, na Croácia, onde ganhou o
primeiro prêmio. A peça é de uma
simplicidade genial: dois isqueiros, um vermelho e outro verde,
que se olham, posicionados no batente de uma janela.
"Kiss" é uma referência explícita
aos "beijos" de Brancusi e de Rodin, mas vai muito além. As cores
verde e vermelho representam diferentes temperaturas e emoções,
quentes e frias. Também contém
uma leitura político-religiosa, já
que o verde é a cor-símbolo dos
muçulmanos e o vermelho, dos
comunistas. Os dois grupos conviveram em harmonia durante o
precário regime comunista na Iugoslávia.
A peça também representa um
diálogo entre dois momentos da
história da arte. Traz em si referências à produção ocidental
-arte pop e ready-made- e ao
legado cromático dos construtivistas russos.
"Kiss" é ying e yang. Representa
a harmonia perfeita, algo que existia em Sarajevo antes da guerra.
Mas, ao mesmo tempo em que os
isqueiros se beijam, também se
colocam em posição de enfrentamento, como duas bocas abertas,
prestes a se devorarem.
"A peça narra uma situação em
que basta um pequeno atrito para
que uma paixão se acenda", disse
Soba à Folha.
Também no ano passado, Soba
realizou a performance "No
Lyrics, No Music, No Country,
Nothing...", em que personificou
um músico que canta sem voz
com um violão sem cordas e uma
tabuleta sem dizeres em frente a
uma lata com os dizeres "not to be
sold or exchanged", usada pelos
norte-americanos para acondicionar os alimentos que doavam como ajuda humanitária.
Soba se alimentou da guerra que
devorou sua cidade e seu país pelas bordas. Esse sim é um artista
antropofágico, apenas para usar o
termo mais caro à nossa Bienal.
Sua obra mais importante, porém, não chegou a ser realizada.
Durante os três anos em que esteve no front, contra os sérvios, Soba idealizou uma peça de "land
art" e construiria, com a ajuda de
alguns outros amigos soldados,
uma série de trincheiras que reproduziriam as linhas da tela
"Broadway Boogie-Woogie", de
Piet Mondrian. Chegou a pedir autorização do Exército bósnio, mas
ela foi negada, primeiro pelo perigo que ofereceria e também porque não poderia ser fotografada, já
que helicópteros não levantavam
vôo no front. "Isso sim seria a verdadeira confrontação entre arte e
guerra", disse Soba.
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