São Paulo, terça-feira, 06 de abril de 2004

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FERNANDO BONASSI

Lugarzinho pequeno

É um lugarzinho de nada. Insignificante mesmo. Coisa pouca. Quando você vê, é melhor esquecer. É um lugar tão pequeno, mas tão pequeno, que nunca pareceu assemelhar nem sequer ao mais improvável de fazer alguma coisa.
Não que haja muito o que fazer por ali. As placas das fábricas, por exemplo, enferrujam de não ter necessidade. O que os hospitais precisam é de um sangue que pouca gente pode dar em solidariedade. Portanto vende. Cada um vende o que pode; cada um dá o que tem, não é mesmo? De graça é muito pouco. De forma que as escolas de economia estão em fraturas e caindo aos pedaços, sem que a mínima prosperidade mal exigida seja conseguida (ou consentida). Como desde sempre naquele lugar pequeno os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres, achou-se por bem culpar a história. E quem pensam que são aqueles cidadãozinhos caipiras para fazer uma Revolução Francesa qualquer?!
Até parece poesia, mas não é. É piada! Pois, se os escritores e os historiadores daquilo tudo usam fardas e marcam hora pra tomar chazinho!
As praças envelheceram sem restauro, como os postes apagados, os cachorros venenosos e os mendigos sarnentos. Naquele lugar mínimo, tudo passa. Mesmo o que é mesquinho e até o cheiro de carniça que irrita as narinas... Aquele lugar pequeno fica assim, modestamente olhando seu passado, rabo entre as pernas.
Pode-se dizer à boca pequena que os caixas eletrônicos ficaram mais modernos com o mercado financeiro, ainda que uns permaneçam atacados pelos mesmos vândalos medievais e o outro seja tão atraente que pareça um pecado de capitais.
Naquele lugar miserável, as poucas indústrias que prosperam são as do vidro blindado e dos caixões de defunto. Um negócio que sempre "tem saída", como se apregoa nos cartórios de falências.
Em tal lugar pequeno o jogo ilegal não é legalizado. Nem é necessário: a realidade jurídica fornece todos os aspectos lúdicos insuficientes à diversão dos mais espertos.
Lá, onde as idéias são minúsculas, o arrocho é o critério. Têm a sua lógica as autoridades responsáveis pelo achatamento: o que é esmagado não precisa de recursos. Um morto gasta menos que um vivo! Não precisamos ter estudado com dinheiro público em Chicago para entender esta matemática cartesiana: é assim que se consegue um desempenho menos desfavorável aos credores nos superávits primitivos, oras!
Quanto à elitezinha daquele lugar de nada, todo mundo quer viver de renda, de forma que as casas estão compradas, mas ninguém pode alugá-las! Não têm muito mais dinheiro para jogar fora! Como os desgraçados do lugar pequeno empregam muito mal o seu ódio, matam-se em primeiro lugar, até que espirre sangue azedo na parede imaculada dos condomínios fechados. Aí sim é que dá briga e notícia no telejornal!
Aliás, uma televisão daquele tamaninho trata de dar os exemplos mais mesquinhos, adequados ao mínimo interesse e risco que a população inspira aos "experts" em comunicação.
Todos ficam presos à falta de opção, pois o que é pequeno não deve variar. Especialmente o lucro, que o perigo da inclusão é que os já incluídos temem onde ela pode acabar tirando seu conforto.
Quanto aos que compram imóveis na planta naquele lugar pequeno, alguns grandes empreendedores podem deixá-los plantados ao relento. Quem se importa que morram de fome agarrados às chaves de suas portas arrombadas entre preces e invasões? Num lugar pequeno como aquele, o tempo para se preocupar com o que quer que seja é mínimo. Não é que todos tenham mais o que fazer, como eu disse. É mais que não fazem nada juntos. Ou separados.
A segurança de que dispõem é contratada ao inimigo.
Para dar mais exemplos quanto a isso, as polícias competem entre si violentamente pela bandidagem, assegurando a moralidade e o bom exercício da concorrência. Pelos fundos monetários esse tipo de ética é muito apreciado. Assim, naquele lugar pequeno, fica-se como está para ver se vira de outro jeito. É uma falta de raciociniozinho adequada ao tamanho de quem o tem.
Quanto à fé, por incrível que pareça, se apresenta em grande quantidade! É preciso acreditar em alguma coisa, e coisas desse tipo não faltam aos desesperados.
Não que não se pense no futuro mais terreno. Se pensa. Um pouco. Problema é que os terrenos estão grilados em processos intermináveis. Quanto ao futuro, já que ele parece uma droga, a juventude desempregada prefere tomar a sua parte agora, direto na veia, dividindo a seringa das suas loucuras e doenças sexualmente transmissíveis. Há bom comércio de remédios para o espanto. O governo os fornece a quem o pode comprar, reelegendo-se com programas dessa ordem. É um lugarzinho pequeno, que está diminuindo de exaustão e deve morrer com as esperanças frustradas dos vivos que insistirem. A índole das pessoas é a melhor possível nas circunstâncias...
Veja bem: aquele lugarzinho mínimo não fez a escolha desse crescimento todo, que parece estarmos fazendo em alguma parte nesse momento...
O lugarzinho de que estou falando é pequeno mesmo. Mínimo. Nem sei por que eu fico escrevendo isso... essas coisas dão azar... sai fora, miséria!


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