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Anselm Kiefer entende o nosso Holocausto
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Quem já foi ao restaurante
do edifício Itália conhece a
sensação de vertigem, e ao
mesmo tempo de conforto, que
a vista de São Paulo propicia
daquele andar tão alto. De
avião é diferente: nós nos espantamos com a extensão da
cidade, com o fato de que não
acaba nunca, de consumir
muitos minutos de fumaça até
que o avião pouse finalmente.
Do último andar do edifício
Itália, o aspecto horizontal, a
largura da metrópole é menos
impressionante do que a perspectiva vertical, o abismo das
janelas, das ruas no fundo e
das paredes de concreto: estamos num avião a pique. Olhamos para baixo e é como se o
próprio restaurante funcionasse como uma pirâmide invertida. Aquele espaço onde se distribuem mesas, cadeiras, um
piano de cauda, maîtres e garçons parece amplo demais para resistir à atração do fosso, à
voragem perpendicular, ao rumor do trânsito, à queda. Vivemos um suicídio de mentira
-e o reconforto de que essa
tentação foi virtual.
A exposição de Anselm Kiefer, no MAM do Ibirapuera,
mostra o encontro de um dos
maiores pintores da atualidade com essa paisagem paulistana. Para quem gostou das
fotografias publicadas na imprensa, um aviso: os quadros
de Kiefer, ao vivo, praticamente esmagam qualquer tentativa de dar conta deles na página de um jornal ou de revista.
São gigantescos: convidam o
espectador a chegar mais perto
e a ir mais longe do que é possível. Mais perto, porque verificamos assim a aspereza do cimento, do barro, do tijolo moído, da areia, do carvão, que
compõem essas vistas da cidade. Mais longe, porque a perspectiva desses quadros de algum modo não se completa
nunca. Ou seja, não conseguimos apreender de um golpe a
visão do artista.
A contradição, a ambiguidade, o confronto -conceitos
que estamos acostumados a
encontrar em formas narrativas (a história, o tempo, o romance, a fala) têm aqui uma
expressão simultânea, visual.
Certamente, a exploração da
ambiguidade foi tentada por
muitos pintores modernos.
Quando um quadro apresenta
dois ou mais pontos de fuga
distintos na perspectiva, como
o célebre quarto de van Gogh,
ou quando a multiplicidade de
pontos de vista se afirma no
cubismo, estamos já diante dos
limites da representação "realista". Há também uma ambiguidade conceitual, se podemos dizer assim, em alguns
quadros de Dalí: dois frades,
num mercado de escravos, pintados com exatidão, compõem
à distância os olhos de um retrato perfeito de Voltaire.
Mas isso é apenas uma hábil
ilusão de ótica. Kiefer usa as
ilusões de ótica como ninguém
(experimente ver "Acordados
num Campo Cigano"), mas
seu maior trunfo é introduzir o
tempo -melhor em maiúscula: o Tempo -na pintura.
De modo que o tempo não é
reduzido a uma multiplicidade visual e a ambiguidade não
se torna apenas truque de
perspectiva, e sim ganha espessura, se afirma como construtor e destruidor de coisas.
Estou ficando um pouco metafísico, mas não é nada disso.
Kiefer mostra a cidade de São
Paulo como uma ruína, como
uma metrópole depois do incêndio. Só nesse olhar "arqueológico", por exemplo, a
presença do tempo se torna visível. Mas se Kiefer fosse um
pintor comum, retratar São
Paulo "depois da catástrofe"
seria um ato alegórico mais ou
menos banal -todas as cidades desaparecem, são poeira,
arranhões na superfície do solo, etc.
Contra essa alegoria, Kiefer
apresenta outra: fala de Lilith,
a primeira mulher de Adão, e
de suas filhas a respeito da cidade. O que isso significa?
Muitas coisas. Lilith, segundo
a tradição apócrifa, é a mulher
que não nasceu da costela de
Adão. Seria isso uma alegoria
a respeito das cidades do Terceiro Mundo, que não se incluem na tradição civilizatória
clássica do Ocidente, que Kiefer revisita?
Lilith é também a guardiã
das cidades mortas e a devoradora das crianças recém-nascidas. Seria óbvio demais pensar nos níveis de mortalidade
infantil atingidos nas metrópoles do Terceiro Mundo. Mas
Kiefer sobrepõe, às vistas verticais de São Paulo, camisas de
bebê, um aviãozinho daqueles
que se fazem de papel, uma
mecha de cabelo.
Alguns críticos disseram que
essas camisas "flutuam" sobre
a paisagem. Minha impressão
não foi essa. Estão como que
coladas ao quadro, negando a
vertigem da perspectiva. Sobrepõem-se à tela, cortando
qualquer possibilidade de
imersão estética do espectador
no quadro. São irredutíveis.
As camisas de criança levantam-se, como espectros, de um
quadro que pretendia retratar
a cidade em ruínas. A perspectiva, assim, é questionada pela
aparição dessas vítimas, desses
resíduos, dessas relíquias da
realidade: camisas, cabelos,
aviõezinhos, palavras escritas
na tela, que recupera sua realidade vertical, seu fato de estar
pendurada na parede.
Alberto Tassinari escreveu
um ensaio inteligentíssimo no
catálogo da exposição. Relativiza a idéia de um Kiefer "reacionário-romântico", revitalizador da tradição e nota suas
ligações com o pop. Tassinari
afirma, sobretudo, o fascínio
que Kiefer exerce para além do
alegórico, do conteudístico, de
seus títulos e de suas referências à alquimia, à cabala, à
história alemã.
Mas é claro que, como diz o
próprio Tassinari, é a história
alemã que está em jogo. O país
que matou 6 milhões de judeus
tem, com sua própria cultura,
uma relação dramática explorada por Kiefer. Sua opção de
retratar as coisas em estado de
ruína aponta para a morte
dessa "velha Alemanha" e para a necessidade de matá-la,
pois, ainda que morta, está viva. O esquecimento do Holocausto é uma forma de ressuscitá-lo. Nada pode ser esquecido.
Assim (sigo ainda o texto de
Tassinari) a "recuperação da
pintura" -proposta pelo artista depois de uma década de
"antiarte" -e os virtuosismos
da perspectiva seriam olhadas
irônicas de Kiefer em direção a
um passado mais do que suspeito.
Mas o que acontece quando
ele olha para São Paulo? Ele
entende o nosso Holocausto local e cotidiano. Trata-o como
um passado do qual quiséssemos (e queremos) nos livrar.
Anula, em seguida, a própria
"mensagem". A alegoria (Lilith, etc.) é disfarce. A própria
pintura é disfarce, ou, se quisermos, a alegoria de um disfarce. Está ficando complicado. Não importa. Quando pudermos entender Kiefer, não
será mais necessário: todos os
outros problemas, como o das
crianças de rua, por exemplo,
estarão resolvidos.
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