São Paulo, quarta, 6 de maio de 1998

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Anselm Kiefer entende o nosso Holocausto

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Quem já foi ao restaurante do edifício Itália conhece a sensação de vertigem, e ao mesmo tempo de conforto, que a vista de São Paulo propicia daquele andar tão alto. De avião é diferente: nós nos espantamos com a extensão da cidade, com o fato de que não acaba nunca, de consumir muitos minutos de fumaça até que o avião pouse finalmente.
Do último andar do edifício Itália, o aspecto horizontal, a largura da metrópole é menos impressionante do que a perspectiva vertical, o abismo das janelas, das ruas no fundo e das paredes de concreto: estamos num avião a pique. Olhamos para baixo e é como se o próprio restaurante funcionasse como uma pirâmide invertida. Aquele espaço onde se distribuem mesas, cadeiras, um piano de cauda, maîtres e garçons parece amplo demais para resistir à atração do fosso, à voragem perpendicular, ao rumor do trânsito, à queda. Vivemos um suicídio de mentira -e o reconforto de que essa tentação foi virtual.
A exposição de Anselm Kiefer, no MAM do Ibirapuera, mostra o encontro de um dos maiores pintores da atualidade com essa paisagem paulistana. Para quem gostou das fotografias publicadas na imprensa, um aviso: os quadros de Kiefer, ao vivo, praticamente esmagam qualquer tentativa de dar conta deles na página de um jornal ou de revista.
São gigantescos: convidam o espectador a chegar mais perto e a ir mais longe do que é possível. Mais perto, porque verificamos assim a aspereza do cimento, do barro, do tijolo moído, da areia, do carvão, que compõem essas vistas da cidade. Mais longe, porque a perspectiva desses quadros de algum modo não se completa nunca. Ou seja, não conseguimos apreender de um golpe a visão do artista.
A contradição, a ambiguidade, o confronto -conceitos que estamos acostumados a encontrar em formas narrativas (a história, o tempo, o romance, a fala) têm aqui uma expressão simultânea, visual.
Certamente, a exploração da ambiguidade foi tentada por muitos pintores modernos. Quando um quadro apresenta dois ou mais pontos de fuga distintos na perspectiva, como o célebre quarto de van Gogh, ou quando a multiplicidade de pontos de vista se afirma no cubismo, estamos já diante dos limites da representação "realista". Há também uma ambiguidade conceitual, se podemos dizer assim, em alguns quadros de Dalí: dois frades, num mercado de escravos, pintados com exatidão, compõem à distância os olhos de um retrato perfeito de Voltaire.
Mas isso é apenas uma hábil ilusão de ótica. Kiefer usa as ilusões de ótica como ninguém (experimente ver "Acordados num Campo Cigano"), mas seu maior trunfo é introduzir o tempo -melhor em maiúscula: o Tempo -na pintura.
De modo que o tempo não é reduzido a uma multiplicidade visual e a ambiguidade não se torna apenas truque de perspectiva, e sim ganha espessura, se afirma como construtor e destruidor de coisas.
Estou ficando um pouco metafísico, mas não é nada disso. Kiefer mostra a cidade de São Paulo como uma ruína, como uma metrópole depois do incêndio. Só nesse olhar "arqueológico", por exemplo, a presença do tempo se torna visível. Mas se Kiefer fosse um pintor comum, retratar São Paulo "depois da catástrofe" seria um ato alegórico mais ou menos banal -todas as cidades desaparecem, são poeira, arranhões na superfície do solo, etc.
Contra essa alegoria, Kiefer apresenta outra: fala de Lilith, a primeira mulher de Adão, e de suas filhas a respeito da cidade. O que isso significa? Muitas coisas. Lilith, segundo a tradição apócrifa, é a mulher que não nasceu da costela de Adão. Seria isso uma alegoria a respeito das cidades do Terceiro Mundo, que não se incluem na tradição civilizatória clássica do Ocidente, que Kiefer revisita?
Lilith é também a guardiã das cidades mortas e a devoradora das crianças recém-nascidas. Seria óbvio demais pensar nos níveis de mortalidade infantil atingidos nas metrópoles do Terceiro Mundo. Mas Kiefer sobrepõe, às vistas verticais de São Paulo, camisas de bebê, um aviãozinho daqueles que se fazem de papel, uma mecha de cabelo.
Alguns críticos disseram que essas camisas "flutuam" sobre a paisagem. Minha impressão não foi essa. Estão como que coladas ao quadro, negando a vertigem da perspectiva. Sobrepõem-se à tela, cortando qualquer possibilidade de imersão estética do espectador no quadro. São irredutíveis.
As camisas de criança levantam-se, como espectros, de um quadro que pretendia retratar a cidade em ruínas. A perspectiva, assim, é questionada pela aparição dessas vítimas, desses resíduos, dessas relíquias da realidade: camisas, cabelos, aviõezinhos, palavras escritas na tela, que recupera sua realidade vertical, seu fato de estar pendurada na parede.
Alberto Tassinari escreveu um ensaio inteligentíssimo no catálogo da exposição. Relativiza a idéia de um Kiefer "reacionário-romântico", revitalizador da tradição e nota suas ligações com o pop. Tassinari afirma, sobretudo, o fascínio que Kiefer exerce para além do alegórico, do conteudístico, de seus títulos e de suas referências à alquimia, à cabala, à história alemã.
Mas é claro que, como diz o próprio Tassinari, é a história alemã que está em jogo. O país que matou 6 milhões de judeus tem, com sua própria cultura, uma relação dramática explorada por Kiefer. Sua opção de retratar as coisas em estado de ruína aponta para a morte dessa "velha Alemanha" e para a necessidade de matá-la, pois, ainda que morta, está viva. O esquecimento do Holocausto é uma forma de ressuscitá-lo. Nada pode ser esquecido.
Assim (sigo ainda o texto de Tassinari) a "recuperação da pintura" -proposta pelo artista depois de uma década de "antiarte" -e os virtuosismos da perspectiva seriam olhadas irônicas de Kiefer em direção a um passado mais do que suspeito.
Mas o que acontece quando ele olha para São Paulo? Ele entende o nosso Holocausto local e cotidiano. Trata-o como um passado do qual quiséssemos (e queremos) nos livrar. Anula, em seguida, a própria "mensagem". A alegoria (Lilith, etc.) é disfarce. A própria pintura é disfarce, ou, se quisermos, a alegoria de um disfarce. Está ficando complicado. Não importa. Quando pudermos entender Kiefer, não será mais necessário: todos os outros problemas, como o das crianças de rua, por exemplo, estarão resolvidos.



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