São Paulo, quinta-feira, 06 de junho de 2002

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GASTRONOMIA

Cartesianismo e moqueca

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Estamos na Copa do Mundo, hora de falar em pipoca e pão com manteiga, mas outro valor alto se alevanta. É a Fispal (Feira Internacional de Alimentação), que chegou de novo e vem com tudo.
Laurent Suaudeau continua no leme do Gourmet Show e parece que tudo vai correr na perfeição. Conseguiu trazer Joël Robuchon, o melhor cozinheiro do século, Roger Jaloux, chef do restaurante de Bocuse, e Phillipe Gobet, pâtissier de grande renome. Estamos bem, vamos ter concursos, aulas, seminários, demonstrações e -de choro- a feira inteira para visitar. É hora de se inscrever, é hora. (Fispal Alimentos 2002 - de 17 a 20 de junho/ das 14h às 22h/ Expo Center Norte/ inscrição e informações: www.fispal.com.)
Só quem não está muito feliz é o budião azul, peixe de pesca artesanal das águas mornas do litoral da Bahia, e a queixada ou porco do mato, que vão ter a honra de serem preparados pelos cozinheiros dos concursos regionais. De resto, somos todos vencedores, porque lá vem boa festa.
Fui entrevistar o Laurent, o que eu gosto mesmo é de entrevistar o Laurent quando chega a Fispal, afinal foi ele quem estruturou todo o programa do Gourmet Show e fez dele a sua imagem. Está nos escritórios, como um executivo, e não se vê fogão por perto. O melhor cozinheiro do Brasil, o homem da técnica, do estudo, mãos calejadas de descascar milhões de batatas enquanto aprendiz, agora é consultor e professor, sempre teve essa vocação para o ensino, e ri, descansado e feliz.
Não esconde o orgulho, porque a filha está indo para a França fazer um curso de teatro e o filho entra nas Forças Armadas.
- Meu pai deve estar virando no túmulo com esse neto!
Intriga-se um pouco, como se as profissões saíssem completamente do esperado. Ora, saíram a ele, um sargentão-ator. A braveza que se dissolve em ternura, a cara fechada que é só fingimento e timidez, a perseverança militar de impor suas idéias, a disciplina férrea, a luta pela capivara de appellation controlée. Bão, balalão, senhor capitão. Espada na cinta, uma rosa na mão. Devaneia, pensativo.
- Eu me sinto mais brasileiro do que francês, mas tive a sorte de nascer lá, herdei o cartesianismo e a disciplina de um bom curso de cozinha.
Na sua bagagem, a generosidade de tudo ensinar e de querer um Brasil melhor. Quantas vezes, no passado, me peguei rindo dele, ao vê-lo pleitear cozinheiros imaculados, de toque, orgulhosos da profissão e do uniforme, mesas impecáveis, timing de relógio, utensílios adequados.
Tudo isso para fazer uma moqueca, Laurent? Como nos arranjávamos antes de você chegar? Como é que as baianas se viravam com os acarajés antes que aportasse nestas praias de coqueiros?
Mas o Laurent ganhou a parada, conseguiu, mudou o panorama dos cozinheiros, temos que dar a ele os créditos que merece. Do alto de seu sucesso, insiste:
- É preciso dominar bem a técnica, depois, sim, alterá-la e criar sobre ela, mas os fundamentos, aaahhh, os fundamentos, estes são intocáveis.
- E o pior [continua, levemente indignado] é que fazem cursos para chefs... Chef não é profissão, é uma distinção que se alcança, uma responsabilidade, nós somos todos cozinheiros de profissão.
Sua cozinha é alegre, mas severa. Duradoura, une gerações, tem origem e destino, é deliciosa sem ser frívola.
Elogia, no entanto, Ferrán Adriá, que tem formação sólida, sabe o que faz, quer emocionar com a comida. Laurent quer o dia-a-dia melhor, nada de êxtase rápido do laboratório catalão, quer comida para ser desejada e repetida. Ironiza:
- Ele me serviu madeleine desmontada. Gostei, nada contra, admiro a criatividade séria dele, mas ainda prefiro a montada.
Sempre que converso com Laurent, não consigo tirar da cabeça a idéia do francesinho pequeno, calças curtas no meio da canela e suspensórios, crescendo e morando na casa dos mestres, fazendo o tour de France, Nantes, Bordeaux, Paris. Um ofício, uma tradição passada entre artesãos, uma forma clássica de aprendizado e transmissão de conhecimento. Boulud o elogiou, chamando-o de um cozinheiro à moda antiga. Ele, Boulud, o amigo, também é um grande cozinheiro cheio de regras e fundamentos.
Arrisco um palpite: "Ai, que aflição, Laurent, você está piorando, me parecendo medieval, membro de uma guilda!". Ele não se zanga. Naquele momento da história, arte e artesanato eram a mesma coisa, tinham a mesma dignidade, a importância toda estava no fato de que a catedral ou o patê ficassem perfeitos.

ninahort@uol.com.br



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