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GASTRONOMIA
Cartesianismo e moqueca
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Estamos na Copa do Mundo,
hora de falar em pipoca e pão
com manteiga, mas outro valor
alto se alevanta. É a Fispal (Feira
Internacional de Alimentação),
que chegou de novo e vem com
tudo.
Laurent Suaudeau continua no
leme do Gourmet Show e parece
que tudo vai correr na perfeição.
Conseguiu trazer Joël Robuchon,
o melhor cozinheiro do século,
Roger Jaloux, chef do restaurante
de Bocuse, e Phillipe Gobet, pâtissier de grande renome. Estamos
bem, vamos ter concursos, aulas,
seminários, demonstrações e
-de choro- a feira inteira para
visitar. É hora de se inscrever, é
hora. (Fispal Alimentos 2002 - de
17 a 20 de junho/ das 14h às 22h/
Expo Center Norte/ inscrição e informações: www.fispal.com.)
Só quem não está muito feliz é o
budião azul, peixe de pesca artesanal das águas mornas do litoral
da Bahia, e a queixada ou porco
do mato, que vão ter a honra de
serem preparados pelos cozinheiros dos concursos regionais. De
resto, somos todos vencedores,
porque lá vem boa festa.
Fui entrevistar o Laurent, o que
eu gosto mesmo é de entrevistar o
Laurent quando chega a Fispal,
afinal foi ele quem estruturou todo o programa do Gourmet Show
e fez dele a sua imagem. Está nos
escritórios, como um executivo, e
não se vê fogão por perto. O melhor cozinheiro do Brasil, o homem da técnica, do estudo, mãos calejadas de descascar milhões de
batatas enquanto aprendiz, agora
é consultor e professor, sempre
teve essa vocação para o ensino, e
ri, descansado e feliz.
Não esconde o orgulho, porque
a filha está indo para a França fazer um curso de teatro e o filho
entra nas Forças Armadas.
- Meu pai deve estar virando
no túmulo com esse neto!
Intriga-se um pouco, como se as
profissões saíssem completamente do esperado. Ora, saíram a ele,
um sargentão-ator. A braveza que
se dissolve em ternura, a cara fechada que é só fingimento e timidez, a perseverança militar de impor suas idéias, a disciplina férrea,
a luta pela capivara de appellation
controlée. Bão, balalão, senhor
capitão. Espada na cinta, uma rosa na mão. Devaneia, pensativo.
- Eu me sinto mais brasileiro
do que francês, mas tive a sorte de
nascer lá, herdei o cartesianismo e
a disciplina de um bom curso de
cozinha.
Na sua bagagem, a generosidade de tudo ensinar e de querer um
Brasil melhor. Quantas vezes, no
passado, me peguei rindo dele, ao
vê-lo pleitear cozinheiros imaculados, de toque, orgulhosos da
profissão e do uniforme, mesas
impecáveis, timing de relógio,
utensílios adequados.
Tudo isso para fazer uma moqueca, Laurent? Como nos arranjávamos antes de você chegar?
Como é que as baianas se viravam
com os acarajés antes que aportasse nestas praias de coqueiros?
Mas o Laurent ganhou a parada,
conseguiu, mudou o panorama
dos cozinheiros, temos que dar a
ele os créditos que merece. Do alto de seu sucesso, insiste:
- É preciso dominar bem a técnica, depois, sim, alterá-la e criar
sobre ela, mas os fundamentos,
aaahhh, os fundamentos, estes
são intocáveis.
- E o pior [continua, levemente indignado] é que fazem cursos
para chefs... Chef não é profissão,
é uma distinção que se alcança,
uma responsabilidade, nós somos
todos cozinheiros de profissão.
Sua cozinha é alegre, mas severa. Duradoura, une gerações, tem
origem e destino, é deliciosa sem
ser frívola.
Elogia, no entanto, Ferrán
Adriá, que tem formação sólida,
sabe o que faz, quer emocionar
com a comida. Laurent quer o
dia-a-dia melhor, nada de êxtase
rápido do laboratório catalão,
quer comida para ser desejada e
repetida. Ironiza:
- Ele me serviu madeleine desmontada. Gostei, nada contra, admiro a criatividade séria dele, mas
ainda prefiro a montada.
Sempre que converso com Laurent, não consigo tirar da cabeça a
idéia do francesinho pequeno,
calças curtas no meio da canela e
suspensórios, crescendo e morando na casa dos mestres, fazendo o tour de France, Nantes, Bordeaux, Paris. Um ofício, uma tradição passada entre artesãos, uma
forma clássica de aprendizado e
transmissão de conhecimento.
Boulud o elogiou, chamando-o de
um cozinheiro à moda antiga. Ele,
Boulud, o amigo, também é um
grande cozinheiro cheio de regras
e fundamentos.
Arrisco um palpite: "Ai, que
aflição, Laurent, você está piorando, me parecendo medieval,
membro de uma guilda!". Ele não
se zanga. Naquele momento da
história, arte e artesanato eram a
mesma coisa, tinham a mesma
dignidade, a importância toda estava no fato de que a catedral ou o
patê ficassem perfeitos.
ninahort@uol.com.br
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