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CARLOS HEITOR CONY
Chá das peruas
Ignoro se as peruas grasnam. Parece que os patos é que grasnam. Não sou entendido nisso
NÃO SEI se por sorte ou azar,
encontrei um amigo dos
tempos de jornal, agora dedicado à divulgação de vídeos, depois de ter morado dez anos em
Londres.
Ele se habituara ao chá das cinco e
justo naquele momento estava se dirigindo à pérgula do Copacabana,
onde se inaugurava novo e eficiente
serviço.
Bastou atravessarmos o calçadão,
a hora era aquela. Primeira sensação: a de entrar num galinheiro, ou
melhor, num perueiro: as mesas estavam tomadas por estranhíssima
população de peruas, senhoras de 50
e 70 anos, maquiadas para a ocasião,
vestidas e calçadas para a ocasião,
compenetradas e penetradas pela
ocasião.
E a ocasião era o chá -não a bebida em si, mas a solenidade, o ritual, a
liturgia. O serviço era impecável, excelente mesa de doces e salgadinhos,
variedades de chás e sucos.
Poucas vezes, em andanças por aí,
enfrentei tamanho e tão rico sortimento de geléias, bolos, bolinhos,
brioches -um festim. E o festim seria mais confortável não fossem o
alarido, o grasnar das peruas.
Aliás (e em sã consciência o admito), ignoro se as peruas grasnam. Parece que os patos é que grasnam.
Não sou entendido na matéria, mas
sei que cada bicho tem linguajar
próprio: o cachorro late, o gato mia,
o cavalo relincha, o boi muge, parece
que o lobo uiva, há bichos (não sei
quais) que chilreiam e outros que pipilam.
Bem, as peruas devem emitir som
específico, cuja designação, honestamente não me interessa investigar. Fiquemos com o grasnar, pode
não ser tecnicamente o certo, mas
na prática é o mais apropriado.
O que elas grasnam não é mole, o
que se enchem de bolos e geléias, o
que entopem as bochechas de salgadinhos e brioches, o que falam alto e
não escutam nada -enfim, são peruas de alto coturno. Peruas cinco
estrelas.
Contudo, não são o grasnado e a
esganação que marcam e definem o
gênero perual. Evidente que todas
grasnam e todas são esganadas, mas
o que as distingue dos mortais é um
quê indefinível, uma aura transcendental, um halo sobrenatural que
vem talvez do modo se vestir, de
pensar, de usar adereços. Talvez a
forma de se pentear e maquilar.
Sem esquecer o cheiro: toda perua
que se presa usa dois ou três tipos de
perfumes da moda que, por isso
mesmo, por serem da moda, tornam-se ostensivamente peruais.
É assombroso como elas conseguem a unidade na variedade ou -o
que é mais difícil- a variedade na
unidade, desafio mental que os filósofos, políticos e artistas enfrentam
há séculos.
Não há duas peruas iguais, mas todas são iguais entre si. É o tafetá, o
veludo, a seda, o corte do vestido ou
do casaco, o tipo do sapato, a meia,
os broches e brincos, os anéis e colares e -sobretudo- as bolsas. Ah, as
bolsas! São esclarecedoras, são definidoras na exata conceituação de
Aristóteles: "Indivisum in se et divisum a quolibet alium". Perdoem o
latim, mas em se tratando de peruas,
a tendência é absorver alguma coisa
de perual, como a erudição de almanaque. O fato é que, com ou sem a
ajuda de Aristóteles, a léguas de distância se percebe uma perua pela
bolsa que usa e pelo modo como a
carrega. É como um distintivo na lapela, um estandarte, uma camisa de
clube de futebol: pode-se distribuir
as peruas em primeira, segunda e
até terceiras divisões.
Pode-se fazer uma espécie de
combinado de seleção perual através das bolsas. Agora, mais esclarecedoras do que as bolsas são os adereços -mas isso transcende ao espaço e à intenção de uma crônica. Seria
necessário um tratado, em 12 nutridos tomos, para catalogar e definir
esses adereços -tarefa que realmente não me oferece atrativos.
O chá foi agradável, junto à piscina, atendidos pela própria gerente,
uma antiperua, insuperável em seu
papel e lugar. Só ela, em si e em seu
labor, redimia a paisagem e valorizava o aroma do chá e o sabor das geléias. No fundo, ela se divertia com
as peruas e ganhava dinheiro à custa
delas: estava trabalhando, feia ação
que uma perua prefere morrer a
praticar.
Uma perua, antes de ser perua por
fora (na bolsa, no cabelo ou no sapato), é uma perua por dentro. (Leitoras do Leblon me pediram uma
transcrição revista e ampliada de
uma crônica que escrevi em 2004 na
página A2.)
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