São Paulo, sábado, 06 de junho de 2009

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LIVROS

Crítica/"O Inominável"

Samuel Beckett desafia o romance

Último livro da trilogia do autor que começou com "Molloy" e "Malone Morre" vai ao extremo da experiência modernista

Divulgação
O irlândes Samuel Beckett fotografado em Paris, em 1964

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Inominável" começa cheio de dúvidas ("Onde agora? Quando agora? Quem agora? Sem me perguntar. Dizer eu. Sem pensar. Chamar isso de perguntas, hipóteses...") e termina de modo não muito menos enigmático ("...é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar").
Entre um trecho e o outro, o último volume da trilogia do pós-guerra de Samuel Beckett, antecedido por "Molloy" e "Malone Morre", dinamita de vez todas as convenções do romance: não há personagens, enredo, progressão temporal, ambiente, representação; apenas uma voz que fala, fala e fala, sabe-se lá de onde, sem nenhuma motivação.
Em um mundo que desmoronava, era, mais do que uma obra possível, uma obra urgente. Como diz João Adolfo Hansen no prefácio irritado desta nova edição do texto, não fazia sentido escrever uma história padrão, com heróis ou anti-heróis, em um "mundo em que a morte industrial de milhões foi continuação do que já se fazia na paz: a transformação de todas as relações humanas em cifras que tornam irrelevante a autonomia da experiência subjetiva".

Modernismo extremo
Ali, a experiência modernista é levada ao extremo, a uma espécie de marco regulatório final, a partir do qual seria preciso retroceder se se quisesse continuar, como fazem quase todos os grandes escritores das últimas décadas (Thomas Bernhard, W.G. Sebald, Georges Perec, J.M. Coetzee, o último, aliás, autor de uma tese de doutorado sobre Beckett).
Para o leitor, a quem cabe o espanto, o riso, o nervosismo, a admiração diante desse espetáculo do sentido inexistente, o texto permanece como desafio e lembrança (disso ele não escapa). O problema é: que leitor?
Em um texto clássico sobre Beckett, publicado em "O Livro Por Vir" (ed. Martins Fontes), o crítico francês Maurice Blanchot se perguntava: "Quem fala nos livros de Samuel Beckett? Quem é esse "Eu" incansável que aparentemente diz sempre a mesma coisa?".
A pergunta é obviamente pertinente, mas não seria necessário na atualidade indagar quem é o leitor de um romance como "O Inominável": quem lê em vez (ou melhor, antes) de quem fala? Cuidado, portanto, com a avaliação abaixo: este não é um bom presente para o Dia dos Namorados ou para o amigo secreto da firma.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.


O INOMINÁVEL
Autor Samuel Beckett

Tradução: Ana Helena Souza
Editora: Globo
Quanto: R$ 35 (208 págs.)
Avaliação: ótimo




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